31 de maio de 2010

Vivendo a relatividade: noções de uma vida

A convite da Malu postei em um dos seus blogs, o (In)percepções, um texto-depoimento. Se tiverem um tempinho passem por lá para bisbilhotarem um pouco da minha vida.

http://in-percepcoes.blogspot.com/2010/05/blog-post.html


Vivendo a relatividade: noções de uma vida

*Paula Ivony Laranjeira*

Não nasci aleijada, deficiente, eficiente, especial, cadeirante ou qualquer outra coisa. Nasci menina sonhadora. Cresci sertaneja “arretada”. E atualmente sou/vivo utopias concretas. Muitas vezes, me disseram que eu não poderia fazer certas coisas. Descobri que muitas pessoas não podem fazer certas coisas. Eu fiz faculdade, mas tenho amigos que não puderam fazer. Eu subi no Cristo Redentor, mas muitos não podem ir até lá. Eu fui à praia. Mas muita gente não pode ir. Não posso andar com meus pés. Muitos podem. Não posso jogar futebol. Mas muitos jogam. Não posso participar da corrida de São Silvestre. Mas milhares podem. Descobri que não poder fazer algo é relativo.

Quando pequena era uma princesinha que uma raposa malvada tentou matar aos onze meses de vida, mas o príncipe-irmão a matou a golpes de machado. Aos três anos comecei frequentar hospitais. Um calvário para quem não se via diferente dos outros, muito menos “doente”. Só percebi minhas limitações aos treze anos quando estava diante dos meus olhos uma cadeira de rodas. Então conheci um mundo cinzento. Eu era marciano em meu planeta. Quando eu saia à rua as pessoas corriam para me ver. Era estranho ser alvo da curiosidade alheia. Isto, inconscientemente foi limitando meus passeios e minha vontade de ir a locais públicos na cadeira de roda. Ouvi dos médicos que para mim não havia “jeito” Mas sempre dei meu jeito, e vou driblando os “nãos”.

Paralelo a tudo isso, a escola, meu mundo perfeito de sempre, me permitia outra vida. Comecei estudar com oito anos porque minha mãe tinha medo que eu me machucasse. Ela converteu seu amor em força e me levava em seus braços por uma longa distância até a escola. Quando não mais conseguiu me levar em seu colo, adaptou um carrinho de bebê para me levar. Ao sair da alfabetização mudei de escola. Neste novo espaço me senti mais amada. Eu não disputava espaço com colegas que me olhava com desdém, na Escola John Kennedy todos tinham seu espaço e eu vários amigos. Apenas a velha bicicleta que minha mãe comprou, que por sinal quebrava quase todos os dias, me deixava com lágrimas nos olhos pela possibilidade de não ir á escola. Quando fui para a 5ª série, novo colégio. Mas continuei me sentindo em casa. Todavia a cadeira de rodas veio comigo e com ela o preconceito, meu e dos outros. No entanto, os colegas me faziam superar as dificuldades. Me levavam em casa, me pegavam no colo para levar da sala até a saída onde ficava minha cadeira. Certa vez, uma colega levou uma surra por me conduzir num dia de chuva até minha casa. Neste dia, ela me cedeu seu guarda-chuva e molhou-se, por isso apanhou. Mas nunca deixou de ajudar quando eu precisava.

Pelo fato do meu irmão já casado ter voltado a estudar a noite, mudei de turno para ele me levar. Mas não me adaptei e parei de estudar. Parei de viver. Parei de sair. No entanto, uma amiga me trazia o mundo através das noticias da cidade, das histórias que contava. Outras vezes, ela me pegava nas costas e saia comigo para passear nas proximidades de casa, para ir a um parque ou circo que eventualmente vinham à cidade. Ela era meu tudo. Éramos inseparáveis. Tinha dias que passávamos vinte e quatro horas juntas. Ela me levava para sua casa e lá eu dormia. Tínhamos a mesma idade e ela queria que eu vivesse. Lembro-me que certa vez em meu aniversário, ela quebrou ovos em minha cabeça, jogou trigo, a maior bagunça. Minha mãe a fez me dar banho. Mas isso não lhe foi nenhum sacrifício.

E a vida vai dando voltas. Numa dessas voltas mudei de casa. Mudei de vida. Mudei minha vida. Conheci novas pessoas. Comecei a freqüentar a igreja e grupos de oração, e com uma auto-estima lá em cima, voltei a estudar. Se a felicidade pudesse ser expressa em cores, certamente eu seria um arco-íris ambulante. Me sentia amada por Deus, por minha família, por meus amigos e colegas e especialmente, por mim. Passei a entender que poderia ser feliz sem andar, que poderia dar passos de outra forma. Mesmo que fosse “passos-marcas” de pneu.

Hoje eu sei que a chave de tudo é se aceitar. Quando passei a me amar do jeito que eu era/sou, todos ao meu redor também fizeram isso: olharam-me sem preconceitos e com respeito. Assim, as pessoas deixaram de me olhar com pena. Deixei de ser a “coitada” para ser exemplo. Bem, ainda não sei exemplo do quê, mas se um dia descobrir, eu conto para o mundo. Certa vez, por conta desse “negócio” de exemplo, fui tema de conversa na casa de um amigo. Ele me disse que lá todos diziam que eu era exemplo de vida. Ele disse que eu não era exemplo, era apenas mais uma pessoa lutando pelo que queria. Mais um querendo mudar o rumo da vida. Gostei de ser “mais um na multidão”.

Voltando a escola. Fiz Formação para o Magistério. E não deixei de cumprir nenhuma atividade curricular, inclusive o estágio. Deixando a modéstia de lado, o fiz bem feito (risos). Neste período, estudava pela manhã, estagiava à tarde e a noite fazia os trabalhos do colégio e preparava as aulas do estágio. Foi cansativo, mas para quem tem amigos, tudo fica leve e agradável.

Terminado o colégio, veio o desejo de continuar os estudos. Na segunda tentativa passei em Letras, na UNEB – Universidade do Estado da Bahia. Mas como iria chegar ao Campus, se este fica em outra cidade, a 75km de distância? Quem me colocaria e tiraria do carro que leva os alunos que estudam a noite? Os motoristas e os colegas de carro fizeram isso por quatro anos. Tornaram-se amigos e juntos partilhamos muitas aventuras na estrada: carro quebrado nas madrugadas; carro atolado; batida em vacas, carona em caminhão tanque, fugir da fiscalização, mas também teve brincadeiras, piadas, música, sono, cansaço... Tornamos-nos uma família. Durante este tempo eu saia de casa 17:30. 19:10 chegava na faculdade e de lá saia às 23:10 e chegava em casa por volta de 00:30, isso quando o carro não dava o “prego”. Quando chegou a hora do estágio, eu havia conseguido um emprego como professora no colégio em que estudei. Foi uma loucura, mas consegui me sair bem em todas as atividades, sem negligenciar nenhuma.

Na faculdade fiz amigos, obtive novos conhecimentos, amadureci, mas meu maior ganho foi o amor a literatura. Hoje, sou uma apaixonada por este universo. Por esta paixão criei o blog Pesponteando retalhos literários, e vou passando os meus dias, ampliando meu mundo, avançando rumo a novos horizontes e perspectivas. Neste universo que frequento, leio o mundo de formas variadas, me expresso e creio ser entendida. Ainda não conquistei o cume da montanha, mas sair da base é algo encorajador.

Minha cadeira e meu conhecimento me levam a qualquer lugar. Ao longo da vida aprendi que posso chegar longe quando há vontade em mim e quando há alguém que acredite e sonhe comigo ou que pelo menos empurre minha cadeira (risos). Aprendi que só posso exterminar o preconceito das pessoas quando aniquilar o meu. Viver sendo portador de uma deficiência não é nada fácil, mas quem disse que viver é fácil? Ainda bem que Deus me presenteou com a família e com amigos perfeitos, sem os quais eu não seria metade do que sou.

Amar-me e me aceitar foi a chave de tudo. Foi a grande conquista que fiz, e a partir dela vieram todas as outras. Estou na luta! Tenho muito que realizar. Sou uma boneca de pano, sem graça e sem muito valor, mas ainda chego a Emília, e o Sítio ficará pequeno para mim. Enquanto isso vou pesponteando os retalhos da vida, relativizando tudo. Ainda bem que alguém descobriu a relatividade!

19 comentários:

Daniel Silva (Lobinho) disse...

OLá :)

Eu ja la fui e so digo aqui uma coisa: PARABÉNS :)

Beijinho amigo

Penélope disse...

Paulinha,
obrigada pelas belas palavras que deixastes lá naquele INFINITO.
Beijinhos

Ahab disse...

Fui lá. E descobrí que você é cadeirante. Não que isso mude algo, mais a gente pensa. Foi assim quando eu soube que a Beti Cerquinho (Amiga Blogueira), utilizava-se de moletas para se locomover.

Acho que todos ficamos surpresos com fatos semelhantes, mais hoje em dia isto está sendo tão pouco impactante. Pelo menos para mim, que procuro tratar a todos por igual.

Ah... fiz questão de mostrar que sou teu fã moça.

Beijão.

Luna Freire disse...

Paula, teu depoimento é lindo. E dá uma imensa alegria: de ver que não existe apenas preconceito na humanidade, mas existe, sim, muita solidariedade. Parabéns! (E obrigada por tua passagem nas palavraspontes).

Caio Martins disse...

Paula, tenho intensa admiração por uma virtude: coragem. Mais ainda por outra: sabedoria. E, completando, por sensibilidade. "...ainda bem que inventaram a roda!", você diz. Ainda bem que inventaram Paula, afirmo.

Abração. E vamo que vamo!

Paula: pesponteando disse...

Daniel, obrigada pelas palavras lá no (in)percepções. bjs

Malu, muito obrigada pela oportunidade de me deixar escrver p o (in)percepções. O carinho que lá recebi é indescritível. bjs

Léo, vc sempre um leitor e amigo constante. obrigada pelas palavras e pelo carinho. Ah, e desculpa a susto..rsrs...bjs

Luna, sou uma prova de que solidariedade existe aos montes por aí. a recebi e recebo o tempo todo...bjs

Caio,obrigada pelas palavras afetuosas. Também agradeço por ter sido inventada, ou melhor, criada. rsrs...è muito bom ser parte do mundo e das maravilhas que há nele....bjs

CESAR CRUZ disse...

Paula, te achei sem querer. Estava no blogue Vertentes, do Pedro Luso, e vi sua foto, ali nos seguidores. Vi e pensei: "puxa, ela parece com a Flávia!". Entrei no seu blogue assim, pois vc se parece com uma amiga. Mas que sorte dei!! Que bela pessoa é vc, e que história bonita e suada a sua! Que bom que escreves, vou vir sempre aqui ler suas coisas, seus retalhos.

1 bjão
Cesar Cruz
S.Paulo


em tempo: Me identifico com vc. Sei como são esses olhos que olham, prescrutam...Que bom saber que vc venceu e vence isso todos os dias! leia a postagem abaixo quando puder:

http://oscausosdocruz.blogspot.com/2009/05/os-olhos-dos-outros.html

Nilson Vellazquez disse...

Fantástico esse texto. E essa parte, em especial: Ainda não conquistei o cume da montanha, mas sair da base é algo encorajador.

ErikaH Azzevedo disse...

Paula, se me visses menina, de como eu agora sou toda emoção, lágrimas no olhos sim menina, como que se sentiu fertilizar sabe, como quem sabe que pra fertilizar é preciso molhar os caminhos....

Não sabia das sua limitações e tu me mostraste que muitas vezes certas limitações é que nos faz seguir adiante, na garra de superar, na luta redobrada em forças que parece termos pra conseguir...e tudo depende do querer conquistar.

Tua limitação te ensinou muito o predestinar, a predestinação minha querida é um caminho entre pedras , jamais entre flores...com um tapete de margarida a beijar nossos pés não criamos calos, mantemos sempre pés macios e sensíveis ao chão...e tu não, tens pés de força, pés de raça, pés que podem seguir qualquer estrada no caminho.

Lindo os teus amigos...tens sorte, muita sorte e deves ser uma pessoa muito bonita de se conviver pra teres sempre pessoas assim contigo..eu não acredito em coincidencias, acredito em energias, luz atrai luz, raramente atrai escuridões.

Lindo texto...amei e sinto-me mais leve e tb mais forte e sei essa força que agora sinto parece-me vir de vc.

Um beijo querida

Erikah

Lindy Cardoso disse...

Diante destas palavras só uma coisa a dizer: OBRIGADA!
Por quê?
Pelo seguinte motivo: com sua ajuda aprendi a acreditar mais em mim, a me amar e me aceitar um pouquinho mais.
Amo-te, "meózinha".

Bjs

Pedro Luso de Carvalho disse...

Paula,

A Taís e eu estamos com frequencia falando sobre literatura e sobre os aficcionados a ela (literatura), e aos que escrevem seus textos para publicação nos seus blogs; dentre esses blogueiros, que falamos com interesse e que comentamos sobre o que escrevem, você é uma delas. - Viu o que a Paula escreveu? - Pergunto a Taís.

Pois é Paula, hoje, depois que li esta sua bela história de luta incansável, já não sou apenas seu leitor, mas, mais que isso, sou seu admirador e também aprendiz seu, com essa sua nobre lição de vida.

Beijos, Paula.
Pedro.

Tais Luso de Carvalho disse...

Paula:

Este teu texto dá nó em qualquer um que o leia. Não é um lamento, amiga, isto que acabei de ler é uma lição de vida dada por uma criança que reuniu forças para vencer. E como venceu! Quantas lamentos fúteis vemos por esta vida afora... E que diante de tua luta dá vergonha.

Deixo aqui pra ti não palavras e palavras, não as encontro; mas deixo meu carinho, minha emoção e minha admiração por ti. Aqui em casa, Pedro e eu te temos como exemplo.

Beijo
Tais luso

Paula: pesponteando disse...

Cesar, Que bom q vc me encontrou. Assim, também eu pude encontrá-lo. Depois de ler seu texto, entendi como os "olhares" nos são comum. Não é fácil, não vai ser fácil. mas certamente tbm vc e sua bonequinha saberão lidar positivamente c estes olhares.....bjs

Nilson, Imagine a quantidade de pessoas que ficam sonhando, sonhando e nunca correm atrás. Eu já saí da base...obrigada pelas palavras...bjs

Erikah, como fiquei sem palavras para agradecer seu carinho e suas palavras, deixo um um raiozinho de sol para iluminar sua vida da mesma forma com que suas palavras iluminaram a minha. bjs

Lindy, vc ñ vale...é amiga. Toda palavra é suspeita. mas também sei ser sincera.....Valeu neguinha...bjim


Pedro e Tais, Fico lisonjeada em saber que pessoas que considero repletos em conhecimento e cultura se lembrem de mim e do que escrevo em suas conversas cotidianas sobre literatura.Confesso que isso me ajuda a continuar escrevendo, mesmo não tendo o conhecimento e maturidade que julgo necessária. Mas creio, que é preciso começar de alguma forma, então vou escrevendo dessa forma incoerente e, muitas vezes, ingênua, sem grandes pretensões que não seja treinar e treinar.
os blogs de vocês, são fonte constante de aprendizado. Cada vez que os visito, abro a porta da minha vida para novas aquisições culturais, para um encantamento diante do que se apresenta em cada post...É interessante como somos sempre, desde que portadores da humildade - e creio francamente, que vc a e a Taís a possuem em demasia - somos sempre aprendizes.
Agradeço as palavras de carinho e incentivo. Taís, vc falou em lamento. Não me lembro de ter usado este caminho em minha vida, mas não o fiz pq não tivesse vontade, mas para não levar sofrimento aos que me amam e que precisavam me ver forte. Acho q essa força que me impedia de lamentar era o amor.
Desta também sua admiradora...Abraços Pedro e Bjs Tais...rsrs

T

ju rigoni disse...

Paula,

Admiro sua luta pela vida, - não deve ter sido nada fácil... E torço para que vença logo o preconceito que diz sentir em relação a si própria. Porque o preconceito é uma deficiência.

O preconceito não nos deixa perceber a luz de um sol. E, no entanto, sua luz e seu calor são tão evidentes que seria possível senti-los sem sequer olhar para ele. O preconceito também é capaz de nublar um céu e fazer-nos esquecer que apesar das nuvens, das chuvas, das tempestades, há um sol lá em cima.

Ultimamente, vivo me emocionando em seu blogue. Dia desses, aconteceu enquanto lia a história de seu pai. Hoje, esse texto lindo que é desabafo, que é lição de vida, e que conduz a muita reflexão.

Um beijo e inté!

Paula: pesponteando disse...

obrigada pelo carinho. pelas palavras...Fico feliz que aquilo que escrevo toque de alguma forma as pessoas. mesmo que seja através da trivialidade da vida, embora meu cotidiano seja um pouco diferente, mas não menos comum.
Na realidade, Jú, já venci o meu próprio preconceito. Isso aconteceu há muito tempo. E foi a partir dai que pude fazer tudo q fiz até agora e sonhar com o farei no futuro...bjs

Charlei Andreia disse...

É por essas e outras historias suas que sou sua fá.. Você é alguem muito especial por isso se difere dos demais..Fico feliz por ter de alguma forma presenciado algumas de suas vitorias....

Parabens saiba que vc me faz muita falta!!!!

Seus textos estao maravilhosos!!!

Paula: pesponteando disse...

Shal, vc é parte do q eu sou. Além de amiga foi uma pessoa solidária. Lembra-se do nosso curso de datilografia? E as idas e vindas do colégio? E do estágio? É bom fazer parte de sua vida...Vivemos bons momentos juntas...Obrigada por tudo!

E brigadim por seu carinho e comentário...bjs Em Caio, Abraços em Rander...e bjão p vc...saudades!

Unknown disse...

oi PILS!!!!!!!!!!!
parabéns amiga, ta lindo seu blog.
vc traduziu um pouco do universo literário.
parabéns!!!!!!!!!!!!!!
bjossssssssss

Paula: pesponteando disse...

Ediana, Obrigada amiga. Que bom que gostou. Se quser colaborar com algum texto seu... bjs