25 de fevereiro de 2009

Restos do Carnaval



Clarice Lispector

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.


No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.



E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.



Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.



Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.



Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.



Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.



Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.



Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.


Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.



in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998


Só para contar: moro na Bahia e em minha cidade ñ tem carnaval...aliás, teve algo semelhante na primeira semana de fevereiro...mas não considero carnaval...tenho saudade dos carnavais que vivi em minha infância...!!!

Sem muito o que dizer, me reservo a minha insignificância e aguardo comentários....



3 de fevereiro de 2009

Nga Muturi: um convite a cultura africana


Por: Paula Ivony Laranjeira


O universo africano com sua vasta cultura material e imaterial, bem com o estado de coisificação e alienação a que foram submetidos seus povos, podem ser vistos no conto “Nga Muturi”, de Alfredo Troni, que traz uma narrativa em 3ª pessoa, com um enredo não-linear, permeados de experiências e características de um África colonial, onde o negro exercia um papel secundário. Nele conhecemos a história de Nga Muturi, uma mulher negra, africana, que ainda criança foi retirada do seio da família e entregue a um comerciante branco como pagamento de um “quituxi” do tio. Tornando-se escrava, fica sob os “mandos” do seu senhor branco, que com o passar dos anos morre, deixando à escrava amante sua herança. Nga Muturi para homenageá-lo, realiza os ritos fúnebres com muita pompa. De escrava passa a condição de mulher livre, que mesmo sendo analfabeta e muitas vezes “passada para trás”, consegue se preservar nos moldes da sociedade da época, e manter sua fortuna, como se ver nos seguintes trechos “É muito considerada pelas boas famílias. Faz os seus presentes”(p.45) e “É uma boa cidadã, paga bem os impostos
(...)”(p.46). Mas também, é possível perceber outras pequenas histórias no conto, como a de Chica, uma mucama que tem caso com o Serra, e a história de Bebeca, que de mucama de Nga Muturi passa a ser tratada como filha pela mesma.

Inicialmente, o que mais chama a atenção no conto é a inserção de elementos da língua Ioruba, que desde o titulo “Nga Muturi”(Senhora Viúva), nos faz adentrar nesse universo mágico da literatura africana, até então desconhecida. Nos trechos: “cala-se quando lhe perguntam se é buxila”(p.31) ou “e com o nfungi apresentou-a ao irmão e a ela(...)Parecia uma tambi (p.32) percebe-se expressões e palavras que tornam o conto mais próximo da realidade dos africanos que falam a língua portuguesa, levando os leitores a perceber que o autor é um africano. Segundo Rita Chavez (2007) ao trazer para a literatura algumas marcas da oralidade, os autores revitalizam “a escrita através do questionamento dos modelos ocidentais”, exprimindo assim “o impasse criado entre a recusa de uma tradição imposta pelo sistema colonial e a impossibilidade de retornar integralmente a tradição que fora submetida ao amordaçamento pelo sistema” .Assim ao inserir elementos próprios à língua oral em sua obra, mais especificamente da língua dos iorubas, Troni comprova que o apego à oralidade não é sinal de fragilidade ou impotência, mas símbolo de que os africanos, ainda que inconscientemente, respiram sua própria identidade, e resistem ao aniquilamento da sua memória e tradição.

Ainda com referência a força da linguagem africana , poderia se destacar no texto de Troni a mudança de nome da personagem central de acordo com sua mudança de vida, na juventude Nga Ndreza; no tempo de mucama, Nga Muhatu ; e na viuvez, Nga Muturi. Isso prova que o nome revela a essência daquele que o usa, podendo assim, variar.

Em "Nga Muturi" se percebe a fusão de elementos dos colonizadores portugueses com elementos africanos. Provavelmente o mais perceptível, seja os referentes à morte e seus ritos, que no conto podem ser associados com as missas, a beatificação do caixão, a passagem do cortejo pela igreja, a presença da cruz como marca do cristianismo, relação essa evidenciada nos seguintes trechos: “O enterro foi pomposo”(p. 37), “Houve as encomendações costumadas e saiu o cadáver acompanhado (...)” (p.39), “Vinham dois sacristãs, um com o hissope e outro com a cruz” (p. 38), “Aproximava o aniversário do óbito. Já se falava nas missas (...) ” (p. 41). De acordo com Kabenguele Munanga (2007)

"Os grandes funerais africanos são festas ruidosas que reúnem pessoas de todas as idades num ambiente de excitação sustentado pelas danças, cantos, arengas, ritmos de tambores, comidas e libações. Pouco a pouco a atenção se desvia da morte real, inaceitável em sua dimensão individual e afetiva, para se içar ao plano simbólico onde a morte é garantia de um excedente de vida."

Assim, percebemos que a sociedade africana tem como uma de suas tradições essa comemoração da morte, que deve ser celebrada com toda pompa, para demonstrar o “prestigio” do defunto, e o conto “Nga Muturi” faz isso de maneira brilhante.

Mas Alfredo Troni expõe outro aspecto presente entre a populaçãonegras de uma África colonial, e que perpetua até nossos dias, que é o estado de coisificação a que são submetidos os negros. No conto, a personagem principal é retirada dos braços da mãe, vendida, levada de um lado para outro como um pequeno objeto inerte e sem vontade. Nga Muturi é o retrato dessa “coisa” que o negro se tornou, despojado de suas crenças, costumes, vestuário, família, amores, de sua essência, enfim, de sua cultura. É importante ressaltar que esse estado de coisificação na revela submissão passiva do africano, mas demonstra o estado de alienação em que vivem muitos negros.

Nesse conto a realidade e ficção estão presentes, talvez muito mais realidade. Pois é conhecida de alguns a história da África, suas guerras, o excedente da escravidão em que ainda vivem, problemas sociais, bem como sua rica cultura, todos os elementos que o compõe enquanto povo africano, afro-descendente ou simplesmente “negro”.

Mas o autor africano ainda deixa lugar para o indizível. É possível perceber silêncios, sentimentos que deveriam ser ditos, mas que Nga Muturi prefere não dizer, são vazios que não podem ser preenchidos devido às convenções daquela sociedade, já que preencher seus vazios identitários, significa assumir que um dia foi escrava, usada a revelia do seu querer, coisificada pelo seu senhor. Destarte, Troni em seu conto, nos apresenta o rosto cultural da África.


Referência bibliográfica

(não disponível para esta publicação)



Gostaria de saber o que você achou do texto acima...espero o comentário.....Volte sempre, prometo está postando outros textos...Bjs