20 de abril de 2011

Poesia voando...Sarau na periferia de SP.

Não posso deixar de reproduzir aqui uma reportagem que li hoje no site da Uol. É um emocionante e exemplar ato de propagação da poesia a quem se prontifica a ouvir...


Por: Marina Vergueiro

Nas noites de quarta-feira no Bar do Zé Batidão, zona sul de São Paulo, “o silêncio é uma prece”. O poeta Sérgio Vaz faz questão de avisar que o sarau da Cooperifa “não é balada”. Um dos mais tradicionais saraus paulistanos, pioneiro na periferia da cidade, a Cooperifa encontrou endereço fixo nesse boteco de uma das esquinas do Jardim São Luiz.
Segundo Vaz, o motivo é a falta de espaços públicos para exercer a cultura na periferia da capital paulista. “Não temos teatro, não temos museu, não temos centro cultural. O bar é onde a comunidade se reúne para falar do asfalto, do trator que precisa retirar o barranco, do lixo, do futebol...”, diz ele.
Embora regado a muita cerveja e a uma caipirinha com mel batizada de “gostosinha”, a disciplina exerce um papel tão fundamental quanto a própria poesia na Cooperifa. Ao criar a cooperativa, há dez anos, a ideia de Vaz era “fazer a gentileza de recitar poesia para a comunidade e a comunidade [fazer] a gentileza de ouvir a poesia”. Para isso, segundo ele, não apenas o silêncio é imprescindível, mas o respeito a cada um dos poetas que se arrisca atrás do microfone. E, para que isso seja garantido, todos devem aplaudir a todos com a mesma intensidade.
Desde 2001 a Cooperifa ajudou cerca de 30 poetas a lançarem seus livros, além de ter colaborado para que músicos e rappers gravassem seus álbuns, entre eles F.I.N.O, Wesley Noog, Versão Popular e Jairo Periafricania.
“Comecei a fazer rap com 35 anos e a Cooperifa mudou minha vida porque me mostrou que se eu quero ser escritor eu posso, não preciso pedir autorização para ninguém”, conta Jairo, que em 2010 lançou o disco “O Sonho Não Envelhece” e há três anos dá aulas de rap na Fundação Casa.
Já F.I.N.O, rapper há 13 anos, buscou a literatura para que pudesse “se informar mais e melhorar as letras”. A partir do Sarau da Cooperifa, que frequenta “religiosamente há 2 anos”, passou a se interessar por saraus e, durante a semana, faz uma verdadeira peregrinação pela periferia da cidade em busca de poesia. “Frequento o circuito inteiro: (sarau do) Ademar, (sarau da) Fundão, (sarau do) Binho, Sarau com Elas”, conta ele, que recentemente lançou o single “Que Vantagem Maria Leva?”, com participação da cantora e poeta da Cooperifa Camila Trindade.
Miguelzinho
Além do rap, a poesia de Cordel é responsável por algumas das reações mais entusiasmadas do público do sarau. Um dos poetas responsáveis por isso tem apenas 10 anos de idade e dois discos gravados. Luís Miguel de Araújo Guimarães, o Miguelzinho, provoca gargalhadas na plateia durante os cinco minutos que permanece com microfone na mão recitando uma das dez poesias que guarda na memória. “Às vezes eu demoro um pouquinho pra recitar porque eu decido na hora. O que vier na mente primeiro, eu conto”, diz o garoto, admirador de Patativa do Assaré e Chico Pedrosa. Miguelzinho costuma ir ao bar do Zé Batidão acompanhado do tio Toninho Poeta.
Apesar desses "destaques" da Cooperifa, os aplausos atingem o ápice com a declamação de Dona Edite Marques. Uma das integrantes mais ativas da Cooperifa, essa senhora cega de 68 anos costuma passar de dez a quinze minutos recitando suas poesias favoritas -- sejam versos de Castro Alves ou Cora Coralina --, todas memorizadas com a ajuda de um aparelho no qual escuta as gravações que uma sobrinha faz, em fita cassete.

Noites especiais 

Quando começou, há dez anos, em uma fábrica abandonada no Taboão da Serra, o Sarau da Cooperifa contava com pouco mais de 15 poetas que se revezavam para ler cerca de 10 poesias cada. Atualmente, o sarau chega a receber aproximadamente 60 poetas por semana. Em algumas noites consideradas especiais, esse número pode chegar a 70  -- e muitas vezes alguns ficam de fora porque as duas horas de poesia não são suficiente.
Com a intenção de incentivar a leitura, Sérgio Vaz criou a “Chuva de Livros”, noite que acontece semestralmente em parceria com editoras e doadores, distribuindo livros aos frequentadores do sarau. A mais recente aconteceu em 31 de março deste ano, com o apoio da Companhia das Letras e presença do editor Luiz Schwarcz, que entregou os 250 livros doados à Cooperifa.
Já uma das criações mais populares de Sérgio Vaz é a noite que ficou conhecida como “Ajoelhaço”, que ocorre todos os anos na quarta-feira anterior ao Dia Internacional da Mulher, na qual os homens se ajoelham diante das mulheres e pedem perdão aos pecados cometidos.
No entanto, é na noite de "Poesia no Ar" que a Cooperifa reúne o maior número de pessoas. Em 2011, o evento distribuiu 500 bexigas de gás hélio para que os poetas prendessem suas poesias e as soltassem no céu de São Paulo. Ônibus de Porto Alegre, Guaratinguetá, Guarulhos e Parelheiros vieram a São Paulo para participar do “ataque poético aéreo”, como o definiu Sérgio Vaz.
“Uma vez ouvi um cara falar no negócio de bala perdida na periferia. Fiquei imaginando uma ideia para que a gente pudesse levar a nossa poesia para outros quintais”, conta Vaz sobre o nascimento do “Poesia no Ar”.  Segundo ele, já houve registro de que bexigas chegaram ao bairro do Ipiranga, outro extremo da zona sul da cidade.
Embora deficiente visual há 15 anos, Dona Edite considera essa noite uma das mais belas da Cooperifa.  “Eu sinto a emoção de colocar meu poema dentro da bexiga, de poder soltar no ar e sentir as pessoas perto de mim”, conta, emocionada.

Notícia disponível em: Entretenimento uol visitem e vejam o vídeo.

Noites como esta deveriam se espalhar por todos os recantos deste Brasil. 
Bjs

16 de abril de 2011

Ai ai, este meu sertão de minhas andanças


(agradeço quem informar autoria da imagem)

Pode entrar... 

Sou uma apaixonada por tudo que se refere a recortes, imagens e toda nostalgia que cerca o campo da memória. Não à toa meus trabalhos de pesquisa literária têm foco nas memórias que permeiam o texto ficcional. Estou sempre às voltas com teorias sobre a memória. Mas neste e noutros domingos(de fevereiro do corrente ano) abandonei Halbwachs, Huyssen, Nora, Bosi, Polak e tantos outros para ser eu mesma o emaranhado de imagens, de lembranças, de lugares, de sentimentos e de saudades memorialísticas, totalmente desprovida das redes teóricas.  
Num primeiro domingo, a família se reúne num sítio de um dos meus irmãos, “2”. Ao chegar, nos deparamos com pouco estômago para a comilança que estava disponível: umbu, milho assado, coco verde, melancia, torresmo, laranja, carnes na churrasqueira e um almoço que poderia alimentar um batalhão. Quando a alegria provocada por uma cerveja se instaura, chega, então, a caravana de lembranças e piadas vivenciadas por meus irmãos na infância e adolescência.
 Os causos giram em torno das peripécias de crianças, das histórias de pescaria, da (com)vivência dos “meninos” que hoje se aproximam de meio século (risos). Eu que ainda não sonhava em nascer fico ali, só ouvindo, invejosa de não ser parte daqueles momentos. Eu que nasci quando todos já buscavam beber na fonte do juízo. Mas não “me” arrependo de ter nascido depois, e além do mais, como faço em minhas leituras, viajo naqueles causos, adentro as histórias e tomo parte nelas, me tornando uma personagem-observadora-onipresente.
“4”, de quem ninguém se lembra de histórias para contar, pois segundo ele, preferia observar do que aprontar, busca em sua “memória de elefante”, fatos do “arco da velha”. Em seu monopólio memorialístico todos caem no riso. Conta ele, que certa vez em uma pescaria, entraram numa área onde os peixes fervilhavam, era um tanque particular. Muito animado, o grupo, no qual se achava meu pai e dois irmãos além de outros homens, entrou na propriedade. Entusiasmados armavam redes, riam, arrumavam iscas nos anzóis quando de repente se aproxima um homem montado em um cavalo, o qual  chamou meu pai dizendo: “Ei velhinho da cabaça branca. Vem cá!” Nisso, os outros se entreolharam e guardaram o riso no canto da boca. Meu pai todo altivo dentro do seu corpo franzino, se aproxima do estranho  que continua inquirindo: “Quem deu ordem para vocês pescarem aqui?”, meu pai responde: “ Foi o Seu Felipe. E quem é o senhor?”. O homem sem pestanejar respondeu: “Sou o Seu Felipe! Peguem suas tralhas e vão embora logo, antes que eu chame a polícia”. O riso caiu solto e os pescadores tiveram que desarmar acampamento.
 As histórias do meu pai dariam um livro. Sem contar as dos meninos, mas as deixo para outra oportunidade. Foram tantas histórias neste dia que todos ficaram com a barriga dolorida de tanto sorrir.
No domingo seguinte, fomos visitar a tia Guiomar, mais conhecida como tia Loiça – listo porque quando era pequena, se parecia com uma boneca de louça –  e um de seus filhos que chegara de São Paulo. Meu pai sai pela propriedade rural, também se espalham meus irmãos e sobrinhos pequenos. Logo chegam com cana, umbu, coco... No quintal correm atrás dos frangos para fazer uma galinhada. Na cozinha um caldeirão de leite se prepara para transformar-se em doce. As mulheres não param. Cada uma se responsabiliza por um prato. Acho que Cora Coralina iria gostar de fazer ali, um dos seus quitutes.
A casa muito simples bem como seus moradores. Ali o tempo se encarregou de parar. E mais uma vez as memórias aparecem,  mas desta vez, apenas as minhas. Quando pequena morávamos em casa geminada com esta tia. Mas foi seu filho recém chegado responsável por minha lembranças. Éramos muito amigos, diferença de cinco anos, o bastante para fazê-lo capaz de me carregar nas costas pela feira livre nos sábados, buscando novidades (doces e bonecas) para que meus pais pudessem comprar. Também foi ele o dentista sem intenção que arrancou um dos meus dentes quando na tentativa de me retirar do seu pescoço, perdeu o controle sobre o meu corpo e não conseguiu impedir que eu caísse de boca no chão, perdendo o meu primeiro dente. Vale lembrar que este não seria entregue a fada do dente, mas jogado em cima do telhado com o pedido de um novo dente e rezando para que lagartixas não comessem o pequeno dente de leite, ou segundo a lenda, não nasceria mais. Depois do almoço todos se sentam na sala para uns dedos de prosa e outras histórias.
Porém foi no domingo seguinte que abandonei o presente e fui trilhar como Rosa, meu sertão. Sai da minha cidade e fomos visitar uma tia numa cidade vizinha, na qual morei, por um tempo na zona rural. Na cidade de Igaporã muitas coisas mudaram, porém ainda se mantém os velhos casarões históricos. Ao iniciar a viagem para a zona rural deste município fui retrocedendo no tempo. A estrada, algumas árvores, a casa da tia Raquel, ou melhor tia Quezinha, que de mudança apenas aquelas sofridas pela ação do tempo. Meus primos, casados, com filhos, divorciados, o mesmo jeito de falar, a mesma dureza de vida.
Uma brisa fresca nos acolhe assim que descemos do carro, bem como o frescor da saudade. Em frente à casa, a lagoa Tamanduá  já não goza mais da abundância de outrora. Quando pequena, fora ali que por recomendação médica me levavam para fazer natação, se bem que minha hidrofobia pouco me deixava fazer os exercícios. Cheguei estremecer ante a lembrança do medo. O cheiro do café quentinho trouxe-me de volta a realidade.
Este dia trouxe consigo uma grande tristeza, pois minha tia perdeu a visão de um olho. Sentados na varanda da casa, todos tinham algo a recordar. A tarde já estava findando quando entramos no carro para continuar dando asas à memória. Voltamos por outra estrada, a qual nos levava para nossa antiga casa. Mas antes: “freia! freia!”, todos gritaram. Queriam tirar manga, nas velhas mangueiras plantadas a mais de meio século pelo meu avô paterno. Na boleia do caminhão, minha mãe, meu irmão “2”, eu e as recordações...Da primeira casa dos meus pais, resta uma mangueira e um mourão, mas nesta nunca morei. Subimos mais um pouco e as propriedades da família iam se subdividindo entre as antigas casas de meus tios... até que chegou minha antiga casa, e um filme se fez presente, me teletransportei no tempo e pude voltar com lágrimas à minha infância, os passos que lá ficaram...
Continuamos a viagem e outras lembranças, mas prefiro tê-las só para mim neste momento, em outra oportunidade partilho. Ah, outra vez os gritos de “pára o carro”, desta vez para retirar umbu. Parece que meus irmãos voltavam aos tempos de menino. Em cima do caminhão muita algazarra, riso frouxo, lampejos do vivido e experimentado naquele lugar que já fora reduto de uma única família, dos quais, de dez irmãos, apenas dois permanecem.
Aproveitamos a viagem para visitar outro tio que se encontra doente (Mal de Parkinson), mas este na cidade. Encontramos meu tio e tia e alguns primos. Ali até parece que nos esperavam, já que nos deliciamos com um lanche revigorador que estava à mesa, do qual fiquei com melancia, deixei o café e os bolos para outra oportunidade.
 Na volta, o comentário do quanto as coisas haviam mudado, de como a chuva escassa se encarregava de modificar o lugar, as pessoas, de diminuir a oportunidade de permanência em certos paraísos. Lugares que em minha infância jorravam água, atoleiros, pequenos córregos, grandes plantações, tanques, cacimbas, lagoas...agora o que ainda existe se mostra numa escala mínima, uma coisa triste de se ver. E mesmo assim, perdendo tudo que plantam, estes sertanejos se fazem fortes, sorriem, arregaçam as mangas e enfrentam com coragem as adversidades que o clima lhes impõe. Este é o nosso retrato.
                                              

Gaiola da Saudade

Composição: Jam Da Silva / Maciel Salú
Vivo andando no mundo
Na gaiola da saudade
Igualmente um passarinho
Voando solto nos ares
Querendo água e comida
Pra matar minha vontade
Deixo minha terra chorando
Pra morar noutra cidade

Para que sentir a dor
Para que se tê-la
O sol queima, racha a terra
E a lua clareia

Tempo bom foi no passado
Na época do meu avô
O homem tá destruindo
O que a natureza criou
Planta semente na terra
Espera a chuva e não cai
Tão aborrecendo a Cristo
Por causa de tudo isso
Tempo bom ninguém vê mais

Na estação pego um trem
Sigo firme na estrada
A bagagem é minha roupa
E a rabeca afinada
Vem a noite e não dá sono
Na madrugada cochilo
Vejo a chegada do dia
Não sei
Qual o é o meu destino




8 de abril de 2011

(ENTREVISTA) Marco Haurélio: um dedo de prosa sobre o cordel e o sertão

Por: Paula Ivony Laranjeira

Numa prosa quase um causo, vamos conhecendo Marco Haurélio, um escritor do sertão baiano que na infância brincava de ser cordelista. E o que era brincadeira, tornou-se coisa séria. Hoje ele é referência no escrita e estudo em literatura popular. Morando atualmente em São Paulo não deixa de frisar que tem as raízes no sertão: "E eu agradeço a Deus todos os dias o ter nascido num pedaço do sertão-mundo de Guimarães Rosa." Convido os amigos para puxar uma cadeira, sentar e tomar parte neste causo...

PILS - Quem é Marco Haurélio?


MH: Essa eu posso responder em versos
O meu nome é Marco Haurélio,
Eu sou filho da Bahia.
Ser poeta popular
É minha grande alegria,
Pois vou tecendo universos
Em letras que parem versos,
Estrofes e poesia.

Sou poeta mais voltado para o universo da literatura de cordel, pesquisador da cultura popular brasileira e, neste momento, “estou” editor da Nova Alexandria, de São Paulo, onde coordeno a coleção Clássicos em Cordel.

PILS - A partir de sua experiência, como nasce o escritor?

Marco aos dois meses em ponta da Serra,
já ouvia histórias de cordel
MH: O leitor engendra o escritor. A minha experiência inicial foi com o cordel. Antes de saber ler, já o ouvia na bela voz de minha avó, Luzia Josefina, que sabia vários textos de cor. Havia uma gaveta de um armário, onde ela guardava os clássicos do cordel da editora Prelúdio/Luzeiro e de tipografias nordestinas. Eu pegava três títulos para ler no “olho” do umbuzeiro que tinha no quintal. Tinha, não. Tem. O que não tem mais é a casa. Também gostava de ouvir os contos tradicionais e os romances ibéricos, preservados por sua prodigiosa memória. Aos 9 anos li, numa versão adaptada, As Viagens de Gulliver, de Swift. Reli pelo menos umas dez vezes. Nessa época eu já criava algumas histórias em cordel, fixava no papel os contos tradicionais e desenhava uns quadrinhos toscos, depois vendidos a colegas de escola.
  
  
PILS - Você foi um garoto que aos sete anos já escrevia  história de cordel, O soldado traidor. Na adolescência enviou uma história para tentar publicação na editora Luzeiro, a qual foi recusada. Hoje o garoto nordestino que sonhava ser cordelista se tornou um fato, e diga-se, de sucesso. Então, persistência e dedicação são o diferencial?


MH: Com certeza. Eu não escolhi a literatura de cordel. Fui escolhido por ela. Mas, com o passar do tempo, mesmo sem me afastar totalmente, acabei dedicando meu tempo a outras searas do fazer artístico e da pesquisa. Isso foi importante, pois, além do cordel, escrevo artigos e ensaios em outras áreas, como História, Antropologia e Filosofia. Além de ter alicerçado meus estudos sobre o Folclore, dedicando especial atenção ao conto popular. Persistência e dedicação são, portanto, fundamentais.

PILS - Você é natural de Riacho de Santana, passou a maior parte da vida entre Igaporã e Serra do Ramalho, estudou o Ensino Superior em Caetité, todas cidades do sertão da Bahia. Como estas diferentes e ao mesmo tempo, mesmas realidades contribuíram para o seu trabalho literário?


MH: Nasci na Ponta da Serra, entre Igaporã e Riacho. Você sabe que, na nossa região, para todo lado que se olha, só se vê serra. A criança precisa imaginar o que tem além das serras. Em frente à casa em que nasci está a igreja construída por meu bisavô, o Major Ramiro. Aos cinco anos, meus pais se mudaram para Igaporã, onde estudei da primeira à quinta série. Nesse período, perdi os meus bisavós paternos e, em 1984, meus pais voltaram a morar na Ponta da Serra. Nesse período, eu já sabia o que queria fazer. Eu não sabia se “escritor” era ou não profissão, mas, louco que era, decidi que, um dia, viveria das letras. A realidade descrita por você, nesse caso, exerceu sobre mim uma grande influência. O ambiente, sabemos hoje, não determina, mas condiciona E eu agradeço a Deus todos os dias o ter nascido no num pedaço do sertão-mundo de Guimarães Rosa.


PILS - Ao percorrer sua bibliografia se percebe que você escreve de forma diversificada: cordel, contos, teoria; e para diferentes faixas etárias, mas sempre voltado para a literatura e cultura popular. Como nasceu seu interesse por essa vertente literária?


MH: Acho que duas pessoas têm grande “culpa” por eu ter trilhado esta senda. De uma eu já falei. É a minha avó, D. Luzia, a melhor professora que já tive. A outra é o folclorista, historiador e etnógrafo Luís da Câmara Cascudo, que, por quase cem anos, iluminou esse planeta. A obra monumental de Cascudo é a súmula da cultura nacional. Jamais haverá, no Brasil ou em qualquer outro país, pesquisador mais prolífero.

PILS – Sua ficha bibliográfica já é bem extensa. Apresente-nos alguns dos seus livros.

MH:Gosto demais de minha produção de cordel em folhetos. O meu favorito é As Três folhas da Serpente, baseado num conto menos conhecido dos Irmãos Grimm, enriquecido com referências sutis a antigos ritos funerários e da fertilidade, estudados por Wallis Budge, James Frazer e Vladimir Propp. No campo da literatura infantil e juvenil, tenho vários títulos publicados e outros tantos no prelo. Todos têm por base o cordel ou a cultura popular. Contos Folclóricos Brasileiros e Contos e Fábulas do Nosso Folclore são minha principal contribuição, por enquanto, à cultura popular brasileira. O meu xodó agora é a antologia Meus Romances de Cordel, publicada pela Global, que reúne sete títulos, escritos em diferentes etapas de minha caminhada poética.


PILS - Em Contos Folclóricos Brasileiros você traz uma coletânea de contos populares coletados na região. São os típicos causos que escutamos dos avós, pais, amigos, etc. considerados, muitas vezes, como algo de menor valor. Mas você fez um estudo detalhado de comparação com outras versões existentes já classificadas no ATU, demonstrado que os contos orais que circulam por aqui tem raízes em outras culturas. Fale um pouco sobre esse trabalho.


MH: Boa parte dos contos reunidos neste livro foi ouvida na infância. Outros fazem parte de um trabalho mais recente, que inclui recolha, transcrição e estudo das variantes e versões. São, com as naturais modificações impostas pelo tempo ou pelo espaço, as mesmas histórias contemporâneas da Índia dos Vedas ou no Egito dos faraós. Alguns serviram de fonte para autores como Shakespeare, Boccaccio, Rabelais etc. Derivam, em alguns casos de mitos formadores. Em outros, explicam muito sobre os diferentes estágios civilizatórios. São, em suma, o retrato da alma coletiva.

PILS - Ano passado, além de Contos Folclóricos Brasileiros, você lançou o livro Breve Histórico da Literatura de Cordel. Como é trazer um livro de teoria sobre o cordel num país em que ele, supostamente, é visto como algo menor?


MH: Acho que ele existe mesmo por conta disso. Apesar de estar na base da formação cultural do Brasil, o cordel sempre foi visto como literatura menor, especialmente no meio acadêmico. O poeta de cordel, de certa forma, se acomodou e aceitou o papel que lhe era destinado. Aceitou, inclusive, o gueto da “poesia popular”, determinado por Patativa do Assaré no poema matuto “Cante lá que eu canto cá”. Mas, mesmo assim, há vozes dissonantes: autores que têm consciência do papel identitário da arte que professam, o que não significa submeter-se á camisa de força linguística ou ao confinamento geográfico.

PILS - Você usa a expressão “gueto da ‘poesia popular”, . Em Crítica sem juízo, Luiza Lobo traz uma citação de Miriam Alves na qual se refere à literatura de temática afro. Ela diz: “o que nós poetas negros vivemos hoje não é um gueto. Gueto é quando se é segregado pelos outros. Hoje nós vivemos o quilombo; a revolta que nós mesmos provocamos (...)”. Assim, cogito: Patativa não estaria se referindo a este espaço que Mirian chama de “quilombo”, ou seja, um lugar escolhido, no qual se busque a preservação da identidade e a própria sobrevivência?


MH: Acredito, no caso do Patativa, tratar-se de outra coisa. Quem o conheceu diz que ele sabia muito bem se autopromover. O que, convenhamos, é uma qualidade. Ele era realmente um poeta camponês. Mas era um poeta camponês que leu Os Lusíadas e sabia de cor vários poemas de Castro Alves. O problema é que pesquisadores desavisados, a partir da fixação de estereótipos, acredita que a preservação de determinadas manifestações tradicionais – e alguns equivocadamente incluem nesse rol o cordel – dependem do isolamento cultural e geográfico. Como, se Leandro Gomes de Barros, Silvino Pirauá de Lima, Francisco das Chagas Batista, para se fazerem conhecidos, tiveram de migrar do sertão paraibano, entre o fim do século XIX e o começo do século XX, para o Recife? E nem por isso deixaram de ser o que eram, pois acrescentaram novos saberes, fazendo com que dessa mistura – a cultura tradicional com a livresca – nascesse a literatura de cordel.


PILS - Agora você traz Meus Romances de Cordel. O que o leitor vai encontrar neste livro?


MH: Várias faces da chamada poesia popular. Desde o romance de encantamento, presente em História de Belisfronte, o Filho do Pescador e na História da Moura Torta, até o romance picaresco, base do Decameron de Boccaccio e de obras como o Lazzarilho de Tormes e o Mercador de Veneza, de Shakespeare. No meu livro, o pícaro é o protagonista de Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo. Há, ainda, A Briga do Major Ramiro com o Diabo, em que recrio em versos uma lenda sertaneja envolvendo o meu bisavô, e Os Três Conselhos Sagrados, ambientado em Bom Jesus dos Meira, ou seja, em Brumado. Traz também o meu primeiro romance publicável, O Herói da Montanha Negra, escrito em 1987, que considero meu primeiro livro publicável. Por último, o poema Galopando o Cavalo Pensamento, composto em martelo agalopado (décimas de dez sílabas). A apresentação é da professora Vilma Mota Quintela, que conheci no Encontro Internacional de Literatura de Cordel, em João Pessoa (2005).


PILS – Marco, você poderia caracterizar a Literatura de Cordel e nos dizer como ela surgiu? Ela é reconhecida, de fato, como literatura?


MH:Na forma como a conhecemos (com predominância da sextilha setissílaba), ela nasceu na Paraíba, com os poetas Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá de Lima, ainda no século XIX, consolidou-se como atividade editorial no Recife e na região do Brejo paraibano, e espalhou-se por outras regiões do Nordeste e Norte do Brasil, levado na matula do migrante. Estou me referindo ao cordel no formato consagrado pelos autores e pela predileção popular. Mas o seu substrato, composto por contos tradicionais, romances ibéricos, a gesta carolíngia e, no Brasil, a gesta do gado, tem raízes longínquas. O nosso cordel aproxima-se, em certo ponto, da poesia popular praticada em Portugal, Espanha, França, Itália e na América Espanhola. Mas apresenta uma temática mais abrangente e dialoga desde sempre com outros gêneros literários. Ganhou, assim, uma feição própria. Quanto ao reconhecimento, ele existe. A literatura de cordel é respeitada por alguns dos maiores nomes de nossas letras. Ao mesmo tempo, enfrenta o preconceito linguístico e social de alguns gramáticos e de pretensos poetas “eruditos”. O pesquisador paraibano Aderaldo Luciano, da UFRJ, foi questionado, quando postou um artigo de sua autoria sobre a coleção Clássicos em Cordel, no blog Poesia Hoje, por um desses pretensos poetas “eruditos sobre a “autenticidade” dos poetas “populares”. Ou seja, o cordelista precisará, a partir de agora, na opinião desse rapaz, de um atestado de “autenticidade”. Felizmente, atitudes preconceituosas partem de uma minoria.

PILS - Nas escolas, o ensino da literatura se pauta em obras clássicas, deixando de lado “tudo” que não faz parte do currículo. Na Bahia, por exemplo, não se estuda a literatura de cordel nas escolas, pelo menos não como deveria: como surgiu, as características, representantes, etc.O uso desta literatura se dá como um recurso didático ou tipologia textual que serve, muitas vezes, para falar/explicar alguns assuntos. Poderíamos chamá-la de literatura marginal. Como você pensa essa questão?


MH: Eu não chamaria o cordel de literatura marginal, mas penso que ele foi, durante muito tempo, “literatura marginalizada”. Marginalizada, pois era avaliada de acordo com a classe social que mais a consumia. Hoje, com sua difusão pelo Brasil, parte desse preconceito tem sido vencida. Para superar o preconceito, quase sempre motivado pelo medo e pala ignorância, a inclusão do cordel na sala de aula é fundamental. Eu passei cinco anos na UNEB, em Caetité, e só uma professora, Guilhermina, de Filologia Românica, abordou o assunto. Hoje, com o professor Rogério Soares além de outras iniciativas, há uma abertura, mas a realidade está longe do ideal. Aderaldo Luciano, por exemplo, advoga a inclusão do cordel no todo literário brasileiro.
Abaixo, reproduzo trecho de um estudo de Vilma Mota Quintela, que aclara muitos pontos a respeito desta “marginalização” e da tentativa de fossilização levada a cabo por alguns “estudiosos”:

“Compreender o cordel como um sistema cujas raízes se situam em práticas populares tradicionais, ou seja, não hegemônicas da sociedade, não implica, em absoluto, validar a noção ainda corrente do cordel como um produto de relações de produção cultural anacrônicas, isto é, deslocadas do contexto cultural global. Ao contrário disso, uma visada em perspectiva histórica permite observar que a existência do cordel como um sistema de produção “popular” sempre dependeu do diálogo dos seus produtores com seus diversos outros. Assim, ainda que não se confunda com o massivo, o cordel sempre agregou em seu discurso, em seu suporte e em seu sistema de divulgação mecanismos que lhe permitiram, ao longo dos anos, não apenas resistir, como também atender às injunções do mercado. Da mesma forma, embora se constitua com base na lógica da oralidade e, em princípio, tenha servido, efetivamente, a esse domínio, o cordel não deixa de refletir e mesmo de legitimar, de diversas maneiras, a preponderância política do discurso letrado.”

PILS - A Bahia é seu lugar de origem. Mas é São Paulo que acolhe e dá chances ao nordestino escritor, e mais precisamente, a um escritor de uma literatura tipicamente nordestina: o cordel. São Paulo e Rio de Janeiro ainda representam sozinhos o espaço para quem deseja crescer dentro da literatura? Como você vê a Bahia em termos de possibilidades para quem deseja viver da literatura?


MH: Essa é a pergunta mais difícil. Quando saí da Bahia a primeira vez, em 1997, pensava que, chegando a São Paulo, veria as portas das editoras escancaradas. A realidade mostrou-se em toda a sua crueza. Estive em muitas editoras, inclusive na Paulus, e não consegui “emplacar nenhuma proposta. De volta, mais maduro, em 2005, para trabalhar numa editora, a Luzeiro, especializada em cordéis, eu descobri que o problema não era das editoras. Era meu. Eu não sabia o que queria de fato. Hoje, já penso em incursões por outros campos, como o teatro e a prosa. Mas só o farei quando tiver certeza que estou pronto para dar esse salto. Em relação ao papel do Rio e de São Paulo como espaços de consolidação de carreiras artísticas, para além da literatura, penso que já foi maior. Hoje, temos iniciativas interessantes no Rio Grande do Sul, Minas e no Nordeste. Fortaleza é um exemplo. Na Bahia, lamentavelmente, falta uma editora que abarque parte da produção literária, em que pese o fato de termos alguns dos maiores nomes das letras nacionais.


PILS - A visão acerca do Nordeste é de uma região seca, sofrida e triste. Como você vê o nordeste? Ele é apenas uma região carente?


MH: O Nordeste é mais do que seca, peste, fome e coronelismo. É uma região culturalmente rica e economicamente viável.

PILS – Poderíamos pensar o Cordel como uma forma de expressão literária e cultural capaz de dizimar a visão de um Nordeste pobre, no que se refere à sua cultura?


MH:Com certeza. A região que deu ao país Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Castro Alves, Manoel Bandeira, Leandro Gomes de Barros, Luiz Gonzaga, Mestre Vitalino, Delarme Monteiro, Gonçalves Dias, merece respeito. Aliás, todas as regiões do Brasil, que tingem a nossa cultura com as cores da diversidade, merecem respeito. O cordel pode, e deve, denunciar as mazelas sociais e políticas do Nordeste, mas também mostrar a riqueza e a pujança da cultura nordestina.
No folheto Os Três Conselhos Sagrados, narrando a visão de um migrante que retorna para sua terra, após trinta anos de ausência, escrevi:


Olhou o Rio do Antônio
E ergueu ao céu uma prece,
As águas iam levando
O bem que restabelece
As forças já combalidas
De quem de Deus não esquece.


PILS - O fato de ter origem no Nordeste, e mais precisamente nas camadas populares, explica a não difusão e valorização do cordel na sociedade?


MH: Até certo ponto, sim. Mas tenhamos em mente que os cordéis no Nordeste eram lidos desde a mais humilde choupana até as casas grandes. Mas, hoje, parte dessas barreiras foi, ou está sendo, superada. A coleção que coordeno, pela Editora Nova Alexandria, a Clássicos em Cordel, é adotada em várias escolas particulares de São Paulo e de outros estados, e seus títulos estão sempre presentes em seleções de programas governamentais. As grandes editoras, aos poucos, incluem o cordel em seus catálogos. Por falta de traquejo de alguns editores, tem saído muita coisa pavorosa, embrulhada e vendida como cordel. Mas também tem saído muita coisa boa.


PILS - Você é um dos fundadores de A caravana do cordel. Explique como surgiu essa ideia, e como funciona o projeto.
Ônibus-biblioteca, onde fez oficina 
com o também cordelista Pedro Monteiro.
 MH: O projeto surgiu das discussões que nós, cordelistas, fazíamos com o intuito de ampliar mais ainda os horizontes do cordel na Pauliceia. Os fundadores são, além de mim, João Gomes de Sá, Frei Varneci Nascimento, Costa Senna, Nando Poeta, Pedro Monteiro, Cacá Lopes. Depois vieram outros autores. A primeira apresentação aconteceu em Guarulhos, em 2008, num evento chamado Salão da Literatura de Cordel, coordenado pelo poeta João Gomes de Sá. A partir de julho de 2009, a Caravana passou a se apresentar no Espaço Cineclubista da Rua Augusta. A partir daí, com grande presença de público, seus membros se dividiram em muitas atividades, algumas delas realizadas em outros estados. Homenageamos poetas como Leandro Gomes de Barros, Antônio Teodoro dos Santos e Chagas Batista Se eu disser que, em alguns momentos, não houve atritos, estaria sendo hipócrita. Houve, sim, e isso contribuiu para o crescimento dos membros da Caravana. Aliás, eu sempre vi a Caravana, não apenas como um grupo de poetas, mas como um movimento. Mais do que isso, um conceito. Tanto que escrevi um texto sobre o movimento reproduzido no livro Acorda Cordel na Sala de Aula, organizado por Arievaldo Viana. E dediquei um espaço privilegiado no meu livro Breve História da literatura de Cordel. Existe até um trabalho acadêmico de Francisca Batista, enfocando o movimento. Por isso, creio que o saldo é altamente positivo.

PILS – Além do trabalho literário, as palestras e projetos, você ainda mantém o blog Cordel Atemporal, que não apenas divulga seu trabalho, mas tudo que se refere á Literatura de cordel e à cultura popular. Tem sido um espaço frutífero?


MH: O Cordel Atemporal é um espaço abrangente que vai além do meu trabalho. É uma ponte para outras manifestações culturais, como o cinema o teatro e as artes plásticas. Se eu reproduzo, num artigo sobre a presença de São Pedro na tradição popular, um quadro de Caravaggio, abro uma janela para o leitor conhecer ou reencontrar esse mestre do Barroco italiano. Apesar do tempo escasso, sempre o atualizo. O conteúdo do blog abrange resenhas, indicações de leituras, ensaios e informações do universo do cordel e da cultura popular. As estatísticas apontam que o Cordel Atemporal é lido em países como Portugal, Estados Unidos, Turquia e Holanda. Possivelmente por brasileiros que moram nestes países.


PILS - Pelo que você fala, e pelo que tenho lido e observado, o cordel tem ganhado muita força ultimamente. Sei que para isso há muita dedicação de cordelistas e pesquisadores em levar esta riqueza cultural aos mais variados espaços. Teremos em breve uma novela que de alguma forma abordará o mundo do cordel. Você acredita que esse espaço aberto na TV pode alavancar uma “redescoberta” do cordel? Podemos pensar a novela como algo positivo para uma nova safra de leitores e pesquisadores nessa área literária?


MH: Acho positivo. O resultado, não dá para adivinhar, mas, do ponto de vista de divulgação, será muito bom. Não espero que a novela Cordel Encantado leve ao grande público a riqueza temática do cordel, até porque, antes de se propor a divulgar esse ou aquele gênero, a novela deve narrar uma história dentro dos parâmetros estabelecidos por uma emissora, no caso, a Globo. Não sei se a novela em si despertará o interesse pela literatura de cordel, como afirmei acima. Se a produção fugir do estereótipo e do falso pitoresco, certamente será um sucesso. Acho que a presença do cordel na trama global será mais conceitual do que estética.

PILS - O Pesponteando e eu nos sentimos honrados em tê-lo conosco falando sobre literatura. Obrigada! A palavra agora é sua...


MH: Deixo minha saudação
Aqui no Pesponteando,
Mesmo a prosa já findando,
Foi grande a satisfação.
Porém nada foi em vão,
Pois falamos da Bahia,
Louvamos a poesia
E outras artes brasileiras;
Viva o cordel sem fronteiras –
Adeus e até outro dia!

Paula, agradeço o espaço e a oportunidade, feliz por fazer parte de seus retalhos literários.




Sobre o autor:

Marco Haurélio, poeta e folclorista, nasceu na localidade Ponta da Serra, município de Riacho de Santana, sertão da Bahia, aos 05 de julho de 1974. Desde muito cedo entrou em contato com a literatura de cordel, escrevendo a primeira estória com apenas seis anos de idade. Hoje, Marco Haurélio é uma das grandes referências nacionais da literatura popular, como poeta ou estudioso da mesma. Ministra palestras e realiza oficinas sobre cordel e cultura popular. Mantém  o blog Cordel Atemporal(clique aqui). Atualmente coordena a Coleção Clássicos em Cordel, da editora Nova Alexandria. Sua bibliografia é composta pelos seguintes títulos:

Publicados pela Editora Luzeiro

• Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo
• Os Três Conselhos Sagrados
• História de Belisfronte, o Filho do Pescador
• O Herói da Montanha Negra
• A Idade do Diabo
• História da Moura Torta
• Nordeste – Terra de Bravos
• Serra do Ramalho – um Brasil que o Brasil Precisa Conhecer
• Romance do Príncipe do Reino do Limo Verde
• A Briga do Major Ramiro com o Diabo
• As Três Folhas da Serpente
• O Cordel – Seus Valores, Sua História (com João Gomes de Sá)

Publicados pela Tupynanquim

• Galopando o Cavalo Pensamento
• Traquinagens de João Grilo
• A Maldição das Sandálias do Pão-Duro Abu Kasem
• As Três Folhas da Serpente (segunda edição)

Publicado pela editora Queima-Bucha

• Cem Anos da Xilogravura na Literatura de Cordel (com Arievaldo Viana)

Publicado pela editora Olho Dágua

• Jesus Brasileiro (com Costa Senna)

Infantis e infantojuvenis

• O Príncipe que Via Defeito em Tudo (Ed. Acatu)
• A Lenda do Saci-Pererê em Cordel (Paulus)
• A Megera Domada (Ed. Nova Alexandria)
• Os Três Porquinhos em Cordel (Nova Alexandria)
• Lendas do Folclore Capixaba (Nova Alexandria)
• Traquinagens de João Grilo (segunda edição, Paulus)
• As Babuchas de Abu Kasem (Ed. Conhecimento)
• O Conde de Monte Cristo em Cordel (Nova Alexandria)
• A Roupa Nova do Rei ou O Encontro de João Grilo com Pedro Malazarte (Nova Alexandria, prelo)

Folclore e estudos da poesia popular

• Contos Folclóricos Brasileiros (Paulus)
• Contos de Fadas Brasileiros (inédito)
• Contos e Fábulas do Nosso Folclore (Nova Alexandria; prelo)
• Breve História da Literatura de Cordel (Claridade)
• Lá Detrás Daquela Serra (Cantos populares; inédito)
• Meus Romances de Cordel (antologia, Global Editora)

2 de abril de 2011

A Literatura infantil: um encontro com a oralidade



Por: PAULA IVONY LARANJEIRA


Sempre que falamos em literatura infantil, pensamos logo em um monte de livros cheios de “Era uma vez”, “Num pais distante”, e “Viveram felizes para sempre”, com ilustrações coloridas, muitas vezes tão detalhistas que “até” impedem a criança de ela mesma criar seu mundo encantado. Por tal, este texto mais do que pressupostos teóricos apresenta o universo literário oral, muitas vezes, ignorado, mas não desconhecido de muitos não-intelectuais. 

Quando sentados com alguns grupos, nas recordações dos tempos de meninice, é comum que façamos um tur pela infância em busca de livros infantis que tenhamos lido. Conheço gente que leu muitos livros e outros que leram poucos, conheço gente que podia comprar e outros nem ousavam pensar nesta possibilidade – na qual me encaixo –, conheço gente que fazia de tudo para ler um livro e outros que faziam de tudo para não ler, mas também conheço gente que mesmo sem ler nas páginas coloridas ou sem cores, páginas com cheiro de novo ou cheiro de mofo de um livro, não foram privadas da literatura infantil. Como? 

Vou falar de uma gente do sertão, que na infância ouvida muitos causos. Aqui, e imagino que o mesmo se dê em outros lugares, é preciso bons escutadores para que os causos comecem a se desenrolar, igual a novelo infinito, pois um causo puxa outro. Sim, porque se o sertão amadurece precocemente muitas crianças pelo sofrimento, ele também serve como pano de fundo e matéria prima para muitos contos infantis que embalam por vezes o sono, os sonhos e a construção identitária das muitas crianças que ali nutrem suas alegrias e um infinito de possibilidades imaginárias.

Quando criança, não tive muito acesso aos livros. Mas nunca faltaram histórias a povoar meu imaginário, pois se livros eram coisa para quem tinha dinheiro, mãe ou avó contadora de histórias era para todo mundo. Assim acontece com muitos que não tendo livros tem avós, pais, irmãos e amigos narradores. E isso nos permite o contato com os contos populares, adaptados, muitas vezes, às necessidades do adulto para com a criança. As mães e avós quase sempre nos reservam contos de encantamento, moralizantes e/ou religiosos; os pais e avôs se encarregam dos contos moralizantes e terror; os irmão ou amigos ficam com os de terror e os humorísticos. Sem contar as sagas de família que também integram a colcha de retalhos da literatura infantil via expressão oral. Nesse sentido, Capek corrobora,

"Um verdadeiro conto de fadas popular não se origina no momento em que o estudioso de folclore o colige, mas ao ser contado por uma avó para seus netos (...) Um verdadeiro conto de fadas, um conto de fadas dentro de sua verdadeira função, existe dentro de um círculo de ouvintes "( apud RADINO, 2001, P.75).

E é justamente este sertão e sua literatura, cheio de cantos, contos e encantos, que permitiu ao poeta e folclorista Marco Haurélio, exemplo frutífero de ouvinte e contador de causo, que seguisse os passos dos Irmãos Grimm, bem como os do Câmara Cascudo, recolhendo um infinito de riquezas guardados e repassados pela gente da terra aos pequenos, e  agora eternizados em Contos Folclóricos Brasileiros. Neste livro encontramos uma variedade de contos que se espalham pelo sertão através das correntes orais, em sua maioria, representada por mães, que sem ter outra forma mais didática de educar os filhos, lhes contam histórias para que inspirados nelas e através das ações das personagens e do desfecho, escolham suas ações  no decorrer da vida.

Como Haurélio enfatiza, aqueles textos não saíram de sua imaginação criadora, muitos daqueles contos ouviu ainda na infância de sua avó, de seu pai e de sua tia, outros ouviu de sábios narradores, a quem creditou todos os contos mesmo sabendo que não são autores, isto porque a autoria já se perdeu no tempo, fator necessário, como afiançar Câmara Cascudo, para o popular:

"É preciso que o conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria, divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais. Que seja omisso nos nomes próprios, localizações geográficas e datas fixadoras do caso no tempo. "(2004, p.13 apud LOYOLA, 2008, P. 23).

É interessante observar que neste livro, Haurélio possibilita ao leitor compreender que estas histórias, perpassadas pelos narradores do sertão da Bahia via oralidade às crianças/adultos, quase sempre tem a mesma raiz de contos de fadas de Perroult, Andersen, Irmãos Grimm, entre outros. Contos estes que foram se modificando, sofrendo alterações. Isto porque não havia nas camadas populares o registro escrito, pois a transmissão se dava via oralidade, fazendo com que as histórias sofressem adaptações que muitas vezes, as deixavam menores, maiores, com a junção de dois enredos num mesmo causo ou se dividindo, gerando dois causos.

Além disso, é possível perceber nos contos maravilhosos de autores tradicionais que as histórias se passavam num ambiente diferente dos nossos, já nos contos populares, a semelhança com o meio é o grande atrativo, pois há sempre a inserção de elementos comuns ao grupo transmissor na história narrada. Eis o grande diferencial.

Na tentativa de entender mais a relação e/ou disparidade entre a literatura infantil e o conto popular, foi necessário percorrer o caminho trilhado pela literatura infantil, no qual  encontramos duas formas corpóreas: a literatura “culta”, baseada na escrita; e a literatura popular, com base na oralidade. Porém, estes corpos distintos, aparentemente, se valem um do outro para manter certo equilíbrio, pois um bebe na fonte do outro.   Nesse sentido, há uma interdependência entre eles. O que não se entende é por que há um sentimento de menosprezo para como a literatura popular, especificamente a oral.

Consta que antes do século XVII, existiam poucos livros, e as histórias eram todas guardadas na memória e contadas para grupos de pessoas das mais variadas etnias e culturas. Mas motivados pelo interesse das crianças e por necessidades didáticas, alguns pesquisadores, como é o caso do Irmãos Grimm no século XIX, recolheram os contos da oralidade e registraram através da escrita em livros. Portanto, torna-se necessário salientar que os contos maravilhosos que conhecemos hoje têm início no século XVII com a “invenção” da infância. Antes disso, os contos pertenciam à cultura popular e eram compartilhados entre adultos via narrativa oral. Porém, com a criação da imprensa e a crescente valorização da escrita, houve um crescente apego às histórias escritas, tida como sinônimo de erudição. O que não era registrado através da escrita, mas transmitido via narrativas orais passava a se referir a algo popular, e, por tal, sem prestígio. 

Assim sendo, percebe-se que mesmo não tendo acesso aos livros, esses não-leitores não eram privados do contato com o mundo encantado do faz de conta contido na Literatura Infantil, pois sempre havia/há um narrador experiente para este oficio. Pode ser um narrador sedentário ou viajante, como caracteriza Walter Benjamim no texto em que fala de Lescov. Sempre há sempre uma situação ou momento propício para que uma história-conto-causo nasça, basta um narrador, uma criança e/ou um grupo de crianças ou até mesmo adultos, para que se descortine para o leitor-ouvinte um mundo maravilhoso, pois quem não gosta de ouvir alguém contar uma história jurando que é/aconteceu de verdade? 
 

Este texto também está publicado em Palavra Fiandeira, edição 59
Agradeço ao Marciano Vasques que ao me convidar para escrever para a revista , sempre me permite novos desafios, novos temas e muitas reflexões. Amigos passem na Palavra Fiandeira e confiram outros textos e outras temáticas.