29 de dezembro de 2008

Machado de Assis: os desencontros da natureza humana no conto “O enfermeiro”


POR: Paula Ivony Laranjeira

Apresentação

Este trabalho é o resultado do empenho de um professor, às vezes, meio maluco, mas admirável, em transformar seus pupilos em críticos literários, ou pelo menos pretensos críticos, isto porque, o trabalho do critico literário pretende um conhecimento da obra, do autor e da literatura, que julga-se ainda não sermos possuidores para comentar um texto machadiano. Assim, este trabalho é antes o aprofundamento de uma simples leitora sobre o autor, a obra e a literatura, ou ainda uma homenagem ao centenário de morte do maior representante das nossas letras: Machado de Assis. Portanto, haverá erros corrigíveis, observações desnecessárias, e certamente ocorrerá a falta de muitas informações que se fazem vitais ao entendimento da excelência de tal autor.

Não contente em escrever contos, o brasileiro Machado de Assis se dedicou também à escrita de romances, crônicas, poesias, teatro e atuou como critico. É considerado um dos melhores escritores do mundo, sendo citado por Harold Bloom como um dos cem melhores entre os universais, além disso, é tido como o mais importante escritor da prosa realista da literatura brasileira. Com raízes nas tradições da cultura européia seus textos apresentam a influência das escolas literárias nacionais. Sua obra divide-se em duas fases: uma romântica e outra parnasiano-realista, na qual desenvolveu seu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil e o estilo é preciso. Traz para o leitor um humor pessimista e a complexidade do pensamento, além da desconfiança na razão - no seu sentido cartesiano e iluminista -, o que faz com que se afaste de seus contemporâneos. A galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da observação psicológica, fato que se constata no conto em estudo. Machado foi o principal responsável pela fundação da Academia Brasileira de Letras e seu primeiro presidente, permanecendo nesta qualidade até sua morte.

Com enfoque nos conflitos internos do homem, este trabalho alçará um vôo panorâmico sobre o conto “O enfermeiro”, de Machado de Assis, apresentado o resumo da obra, a escola literária que representa, e um breve estudo com bases teóricas sobre o conto em questão.

Introdução

A prosa brasileira realista tem em Machado de Assis seu ponto de referência. Seus primeiros textos parecem fracos no que se refere ao nível de consciência crítica, mas não tardou em redigir narrativas onde analisava profundamente as máscaras que o homem utilizava na dinâmica da vida cotidiana. Em sua representação da realidade “(...) não há mais heróis a cumprir missões ou a afirmar a própria vontade; há apenas destinos, destinos sem grandeza” (BOSI, 1976, p. 2001). Ao retratar a natureza humana e sua dualidade, os textos machadianos possibilitam ao leitor uma maior identificação bem como participação no enredo, o que faz de seus livros mais comunicativos e mais apreciados. Nesse emaranhado de histórias universais se destaca o conto “O enfermeiro”, que traz ao leitor, um homem em conflito consigo mesmo, que acaba assumindo a face desejável pela sociedade em que está inserido e não pela consciência que por vezes o atormenta.

O enfermeiro: natureza humana e sociedade

O conto “O enfermeiro”, de Machado de Assis, traz a história de Procópio, um homem que no leito de morte decide escrever em forma de memória uma passagem da sua vida desconhecida de todos: o real motivo que o levou a ganhar sua fortuna. Estudante de teologia, aos quarenta e dois anos, Procópio é indicado por um padre, amigo seu, a trabalhar como enfermeiro para um coronel moribundo. Ao chegar à cidade ouve inúmeras reclamações sobre a personalidade do velho, e a forma grotesca com que este tratava seus antigos enfermeiros. Após uma semana cuidando do enfermo, começa a ser vítima dos maus tratos deste como se percebe no trecho: “Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dois ou três golpes” (p. 103). Neste momento o narrador começa a descrever sua paciência para com o doente “não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade” (p. 102), e ali ficou afastado de tudo o que acontecia no mundo até que o velho em um ataque de fúria lança uma moringa sobre o enfermeiro, machucando seu rosto. Cego de raiva Procópio atirou-se sobre o coronel “Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu.” (p. 104). Após o ocorrido Procópio faz de tudo para limpar a memória do velho Felisberto, dá-lhe um enterro digno, e cheio de peso na consciência vai embora para a capital. Tempos depois recebe um aviso de que deveria voltar à cidade para tomar posse da herança que o velho havia lhe deixado em testamento. Inicialmente pensou em receber o dinheiro e doar aos pobres, mas não o fez justificado pelo bem que prestou ao coronel e pelos maus tratos que dele recebeu. Por toda sua vida tentou limpar sua consciência, procurava os representantes da medicina e contava os males do velho, ao que ouvia dos médicos que este não passaria de uma semana, o que faz com que o “herói” se convença de que não era um criminoso.

No final do Romantismo brasileiro, a partir de 1860, as transformações econômicas, políticas e sociais levam a uma literatura mais próxima da realidade; a poesia reflete as grandes agitações, como a luta abolicionista, a Guerra do Paraguai, o ideal de República. É a decadência do regime monárquico e o aparecimento da poesia social de Castro Alves. No fundo, uma transição para o Realismo. Contexto esse que é evidenciado no conto “O enfermeiro” com a apresentação do tempo cronológico: “Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860” (p. 101) ou “Mandei também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no Paraguai.” (p. 109) Com este último trecho faz referência à guerra do Paraguai que foi de 1860 – 1869, evidenciando mais uma característica realista e machadiana que é apresentar em seus textos uma junção de fatos e conceitos históricos, filosóficos e sociológicos.

O Realismo apresenta a coexistência de um clima de idéias liberais e uma arte existencialmente negativa, e, como salienta Alfredo Bosi (1976, p. 1987), pode parecer um paradoxo, no entanto, tal contraste se dá apenas na superfície das palavras, pois a raiz comum dessas duas direções é a postura incomoda do intelectual em face a uma sociedade que vem se constituindo desde a Revolução Industrial. Dessa maneira, o Realismo apresenta o homem não como o individuo concreto, o “monstro” que gera o caos, mas com uma função mediadora que parte do caráter ou a força dos próprios afetos na “mimese do real” (BOSI, 1976, p. 192), para fazer repensar sobre a impotência a que estavam relegados diante da sociedade bem como os estereótipos de si mesmo enquanto ser social.

Sabe-se que a ficção pode assumir posturas radicalmente críticas em relação ao poder de adaptação das palavras levando a desvendar lugares ocultos do real, ou de uma determinada visão da realidade sob a máscara da neutralidade e da verdade. Assim, o discurso ficcional é capaz de reproduzir múltiplas leituras bem como apresentar o relativo e o subjetivo do narrar. Autor de uma escrita universal, Machado de Assis sai da “imposição” romântica que propõe evidenciar a cor local para apresentar as relações sociais e a natureza humana, de uma forma geral, cabível a muitos homens e não a um em especial. Fato este observado em seu conto, “O enfermeiro”, onde é possível se deparar com a visão de mundo de um narrador-personagem que através da memória faz uma análise (in)piedosa da situação humana e da sociedade que a forma.

Neste conto, Machado de Assis traz uma narrativa em primeira pessoa, onde o narrador-persorsonagem conta uma história por ele vivida, sendo através de seus olhos e sentimentos que o leitor conhece pessoas, lugares e fatos: “Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel” (p. 101), com isso o leitor é levado sutilmente a viver a experiência do protagonista narrador. A história se passa em uma casa de fazenda, no entanto o autor não dá detalhes sobre o espaço, talvez não o julgue importante ao leitor. Em seu conto, o autor dá ênfase às personagens Procópio e o coronel Felisberto, apresentado de relance os padres, que em sua maioria funcionam como personagem único ou personificação da igreja.

Seria fácil prosseguir na interpretação do conto através da análise estrutural, todavia, é preciso deter-se, embrenhar-se nas entrelinhas e observar os “seres humanos” envoltos nas malhas das letras, seres estes, que os textos machadianos deixam transparecer até mesmo os pensamentos mais obscuros. Em “A personagem de ficção”, Antônio Candido (1995, s/p), apresenta a obra de arte ficcional também como lugar de observação dos conflitos e crises humanos muitas vezes transplantados para a obra de arte, e retirados do cotidiano dos indivíduos e dos valores por estes observados:

Como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-social e tomam determinadas atitudes em face dêsses valores. Muitas vêzes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos.

Procópio é este ser de papel que apresenta por toda a trama a colisão dos valores seus/dos outros, e assim expõe alguns dilemas que o consomem até o leito de morte: confessar a real condição da morte do seu benfeitor, o que atesta o peso de sua consciência; justificar sua atitude pelo tratamento que recebia, o que implica falta de caráter; adocicar o caráter e as atitudes do velho, o que explica sua benevolência, e ameniza a forma com que o velho era visto na cidade, limpando assim sua imagem. Vale ressaltar, que no conto, todas as atitudes dos personagens são justificadas. Com isso, se percebe que a natureza humana oscila entre a ganância e a abnegação aos bens materiais, a benevolência e a ira, a consciência e a honestidade, valores estes, em sua maioria, propagados pela igreja, e vistos por alguns como limitadores da liberdade humana.

Ao trabalhar a natureza humana em seu texto, Machado chama seu leitor a uma viagem ao próprio interior, visando um olhar crítico e um maior conhecimento “do homem, do mundo, das relações do homem consigo mesmo, com o outro, com o mundo” (MESQUITA,1987, p. 13). Ao mesmo tempo em que chama o homem para uma reflexão sobre si, o narrador insere os conceitos e princípios moralizadores que o moldam. A respeito da natureza humana o próprio Machado explica:

Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... (...) A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. “O espelho” (ASSIS, 1996, p. 97 - 98)

Assim, o autor demonstra que o homem se faz completo por ser bom e mau ou por seus desejos materiais e espirituais, fugindo assim, dos princípios maniqueístas, que reduz os fenômenos humanos a uma relação de causa e efeito, certo e errado, isso ou aquilo, é ou não é.

Como se vê, as obras machadianas expõem as normas sociais que provocam o amansamento e que dão forma, muitas vezes, ao íntimo de cada pessoa/personagem. Assim ao escrever uma parte de sua vida, Procópio provavelmente busca desfazer-se desse “espírito” que o corrompeu e busca eliminar sua culpa, evidenciado ao mesmo tempo a dicotomia bem/mal que existe em cada ser. Mas, vale ressaltar que o fato lembrado e escrito se torna uma imagem maquiada, visto que como bem lembra Halbwachs (apud BOSI, 2001, p. 55) não somos mais os mesmos de antes, nossa percepção alterou-se, e com ela nossos juízos de realidade e de valor. Mas de onde vem essa dualidade que caracteriza os personagens machadianos?

Percebe-se que Machado de Assis se vale do ceticismo para dotar seus personagens de uma natureza pré-estabelecida, e comum a todos, característica esta nascida das correntes filosóficas da época, como por exemplo o determinismo, o naturalismo e o positivismo. Por tal, imbui seus personagens de um caráter com formação anterior aos fatos narrados, gerando assim, um conflito entre o íntimo do indivíduo e a sociedade, com suas regras e convenções, que o obriga a aparentar ser o que não é. Caso este de Procópio, que agüenta as humilhações impostas pelo coronel, com o intuito de agradar os padres e se fazer “santo”, merecedor da felicidade celeste. Ao inserir tais temas em sua obra, o autor propõe repensar as regras moralizantes que encabresta os homens e caracteriza a sociedade em que este se insere. Dessa forma, o autor consegue dissipar a maldade que aparentemente mora no coronel e a configura em um homem, inicialmente “bondoso”. Não contente com o deslocamento do mal/bem do Coronel para Procópio, Machado de Assis o retira de Procópio e o joga a sociedade. É interessante observar a esse respeito, no texto, uma sutil crítica ao cristianismo, fato reforçado pela nova classe social: a burguesia, já que um dos princípios que a igreja condenava era a usura ou ganância – comum a nova classe, extremamente capitalista e que visava o lucro ou dinheiro em excesso como forma de ascensão econômica e social.

Conclusão

Na teia da sociabilidade em que o prestigio da riqueza é o ápice, encontra-se Procópio, em sua oscilação natural, que nas mãos de Machado ganha matizes de trágico, mas não de monstro. Tudo é bem explicado e justificado. Assim, percebe-se a ficção machadiana como um ponto de equilíbrio, um dos caminhos da prosa brasileira em direção a profundidade e a universalidade. Dessa forma, não deve-se vê-lo como um pessimista antes como junção de um sentido relativo, ou seja, nada é absoluto. O homem não é totalmente mau nem totalmente bom, ele é fruto do meio.


Referencia bibliográfica


(não disponível para esta publicação)

27 de dezembro de 2008

Agulha, linha e retalhos



É possível entender a literatura como uma colcha de retalhos, em que o autor usa de sua criatividade para costurar os recortes de tecidos uns aos outros, criando novos diagramas, com formatos variados, escolhendo cores e estampas adequadas para formar uma nova tessitura, uma peça única e bela. Nessa costura, os retalhos que compõem as histórias são colhidos da memória, bem como do imaginário(...), com cores e estampas que oscilam entre a ficção e a realidade.
Comecei costurar minha colcha de retalhos, embora não contenha histórias nascidas de mim, compõe-se do meu olhar sobre aquilo que outros escrevem. Aprendi que com agulha, linha e retalhos é possível criar algo novo e fazer novo o que antes se fez velho. Assim, vou pesponteando contos, poesias, romances e crônicas a teorias literárias, criando novos textos. Textos simples, ingênuos, incoerentes... mas vou criando!