27 de dezembro de 2009

O pêndulo de Euclides, de Aleilton Fonseca

Portal de entrada do Parque Estadual de Canudos


Bons dias, Seu Aleilton! Como tens passado?

Sabe, eu tô meio lá meio cá, mas vou vivendo assim, do jeito que Deus manda. O que se há de fazer, né?! E foi desse jeito, mesmo assim, com meus perrengues, que venho contar as “novi” de uma viagem que fiz. História triste e bonita, até dava um desses causos que o senhor gosta de contar, que nem Nhô Guimarães.

Fiz a viagem com uns amigos seus, pelo menos foi o que disseram. E não é que, com eles, tive o privilégio de conhecer Canudos e o “outro lado” da história? Na verdade, o que eu queria, mesmo, eram novidades, saber de coisas não “sabidas”, adentrar um mundo que de tão diferente do meu, fosse exótico, irreal, capaz de me abduzir. Mas eu já devia esperar... Andar com seu “povo” significa ir ao encontro do “eu” que há mim, e não o contrário.

Então chega aqui, que te conto “tudim”. Estava eu no meio do sertão baiano, sentada num canto qualquer, um sol escaldante, a água já se evaporava, e de repente passam três homens num carro. O engraçado era que o automóvel tinha até nome, vê se pode! Se chamava O pêndulo de Euclides, só depois entendi o porquê. O possante parou, os homens estavam um pouco atrapalhados com um mapa na mão. Fiquei com medo, afinal por aqui já passaram alguns meliantes fugindo da polícia, entre eles cito Leonardo Pareja – contudo, não pense que isto é para nós motivo de orgulho, muito pelo contrário – mas logo percebi que eram gente de bem.

Vendo minha crescente curiosidade sobre o que falavam, me seduziam para seguir com eles, oferecendo um “lugarzim” no carro. Bem, eu que não sou besta nem nada, fui. Mas olhe, confiei porque eram seus amigos, e tudo respeitador de moça donzela, pelo menos comigo, já que não me dou ao desfrute. Entretanto, vou confessar uma coisa: saí sem avisar minha gente que iria com eles, pois minha mãe do jeito que é não me deixaria ir. Assim, falei que iria ter com uns parentes em outra cidade. Ela nem sonha com as viagens que faço! Então, não espalhe!

Até chegar a Canudos fiquei “mudinha da silva”, só ouvindo as prosas dos três. O professor, um dos viajantes, é que vez ou outra explicava o que era, a mim, desconhecido. Os outros, um poeta e um estrangeiro, este último volta e meia fazia biquinho quando conversava sua língua “aportufrancesada”. Eu dava era risada. E lá íamos, eu no banco carona e o professor dirigindo, e ele, às vezes, me olhava de soslaio com um riso de adulto que vê criança se lambuzando com doce. Contudo, ali estava acontecendo o descobrir do mundo. O mundo de Euclides, do Conselheiro, de Canudos e de um “outro” sertão.

Eles sempre com suas prosas, e, eu atenta, ouvindo as “sabidurias” que falavam. É preciso lhe falar, meu amigo, que eu já tinha ouvido falar do Conselheiro. Porém, no pouco que ouvi, parecia ele um fanático, com pinta de doido, misturado com Francisco de Assis, só que cabeludo. Mas veja só, Seu Aleilton, eu que era lá revoltada com os desmandos de antigamente, por causa do sofrimento do povo sem vez e voz, depois de ouvir as histórias que eles falavam, passei a achar o Conselheiro um homem santo, um tanto parecido com Moisés, o “cara” lá da Bíblia, que queria salvar seu povo da escravidão, retirar do deserto e levar para a “terra que corre leite e mel”.

Confesso, caro amigo, que fiquei impressionada com essas histórias. Mas, olhe, coisa bonita, mesmo, foi conhecer as histórias do Euclides, o homem que escreveu Os sertões. Fiquei sabendo que ele foi mandado para Canudos para escrever a bem das autoridades, mas aí, chegando lá, ele viu a verdade. Sabe Seu Aleilton, eu até acho que ele chorou de tristeza com tudo aquilo: soldados aos montes, canhões, armas de fogo e tudo o mais matando criança, velho, famílias inteiras. E quando a gente pensa nos motivos que levou a essa Guerra... Fico pensando que assim deve ser essas guerras do exterior, por esses motivos que o senhor já deve saber. Porém, não espalhe que tal segredo só pode ser “sabido” por quem viaja em O pêndulo de Euclides.

Tarde em Canudos, vendo-se o Cocorobó e parte do Anfiteatro de Guerra

Continuando minha história... O professor me contou uma novidade: disse que lá durante a Guerra, quando o povo de Canudos estava encurralado, com sede e fome, o doutor Euclides em sua tenda no meio da Guerra foi visitado por um soldado canudense, que entrou por baixo da lona. E ali, naquele instante, passaram a existir dois homens com medo da morte. No entanto, o que me surpreendeu foi o que aconteceu depois, mas essa é outra história que lhe conto pessoalmente.

O fato é que não demorou muito e chegamos a Canudos. E eu, pensei que iríamos ficar em hotel de luxo, daqueles que aparecem em filmes e novelas! Pousamos foi na pensão de D. Elza. Mas olhe, valeu a pena, exceto pela carne de bode, pois não gosto. O mais estava supimpa! Até parecia que eu estava em casa. Por um instante fechei os olhos e tive a impressão de ver aquela senhora se transfigurar em minha mãe: seus modos, o preparo das comidas, o acolhimento às visitas. Se soubesse teria convidado minha Mel[1] para vir conosco, penso que daria longas prosas com a anfitriã da pensão.

Vixe! Já ia me esquecendo de falar! Conheci o Parque de Canudos. Olhei aquilo tudo com lágrimas e muita tristeza dentro de mim. Tive vontade de sair correndo para não ouvir aqueles clamores, vozes, gemidos e tiros que pairavam no ar. Saber das coisas da guerra foi doído, mas os meus três amigos que eram de muita “sabiduria” das coisas, disseram que ainda tem mais coisas a se falar, principalmente, as histórias do povo, aquilo que mistura o lendário ao real.

Eta, Seu “Alê”, figura luminosa para se apreciar na viagem é seu Ozébio, um velhinho cheio de sabedoria, que, às vezes, virava ator para enganar com sua caduquice alguns pesquisadores. Ainda bem que ele se afeiçoou da gente e contou sua história, a de Canudos, da Guerra e me deixou com uma pulga atrás da orelha. E quem não ficaria...

O Grand Finale desse mágico passeio se deu num auto, O auto de Belo Monte. Esse negócio de auto me traz tantas recordações: Ariano, João Grilo, Chicó, Cleriston, Diego, CESC. Mas deixa pra lá que não vem ao caso. Depois voltamos para casa. E assim, naquela viagem, n’O pêndulo de Euclides, as coisas da vida iam se misturando às coisas dos livros e a fantasia invadia a realidade e vice-versa, de modo que não se podia mais separar.

Hoje, tantos dias passados, deu vontade de refazer a viagem, revisitar aqueles lugares, voltar a falar com as pessoas, tomar água de coco na feira, provar as iguarias... “Peraí”! Ei Seu Aleilton, esqueci de falar daqui, do meu sertão, um lugar tão diferente do de Euclides, mas parecido com o seus, os quais visitei em Jaú dos bois; O canto de Alvorada; O desterro dos mortos; Nhô Guimarães e também agora em O pêndulo de Euclides. No meu sertão tem feira igual a que visitamos em Canudos; tem hotel que mais se parece com pensão; tem essa mesma gente que por lá encontramos. Claro, tem outras gentes também; tem esse acolhimento, comidas caseiras, tudo preparado na hora; temos também nosso “Conselheiro”, o padre Aldo Lucchetta, já falecido, e por pouco não tivemos “com” ele uma guerra. Vai ver são estas “semelhanças” que me prendem a você, ou talvez seja esse seu jeito de contar histórias diferentes da minha, mas que lá no fundo são parecidas. Isso enternece a gente e, para não dizer que faz chorar, vou pedir licença a Guimarães, o Rosa, para dizer que nos faz “babar pelos olhos”. Acho que estou alongando por demais esta prosa, então Seu “Alê” – perdoe-me a intimidade – vou ficando por aqui. Outro dia lhe conto outras viagens.

Dê lembranças à família.

Abraços... Paula Ivony Laranjeira.


Biobibliografia de Aleilton


"ALEILTON (Santana da) FONSECA nasceu em Itamirim, hoje Firmino Alves - Bahia, em 21/07/1959. É poeta, ficcionista, ensaísta e professor universitário. Em 1977, começa a publicar contos e poemas no Jornal da Bahia, de Salvador, tendo vencido 3 vezes o seu Concurso Permanente de Contos. Publica também no suplemento A Tarde/Novela, do jornal A Tarde. Em Ilhéus passa a assinar a coluna "Entre Aspas", no Jornal da Manhã. Ainda neste ano, vence um prêmio de contos da Editora Grafipar, do Paraná, além de outros locais. Em 1979, ingressa no curso de Letras da UFBA. Organiza seu primeiro livro de poemas, que recebe Menção Honrosa no concurso Prêmios Literários Universidade Federal da Bahia.

Em 1984 ingressa, como professor, no curso de Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, transferindo-se para a cidade de Vitória da Conquista. Publica o livro de poemas, O espelho da consciência. Em 1988, especializa-se em Literatura brasileira, ao ingressar no Mestrado em Letras, na Universidade Federal da Paraíba. Em 1992 defende tese de mestrado, sobre música e literatura romântica. Em 1997, defende a tese de doutorado intitulada: “A poesia da cidade: Imagens urbanas em Mário de Andrade”, que sairá em livro proximamente.

Ainda em 1996 retorna a Salvador, onde fixa residência. Concorre ao "Prêmios Culturais de Literatura" da Fundação Cultural do Estado da Bahia, com o livro Jaú dos Bois, que fica entre os vencedores (3o Lugar) e é publicado pela Relume Dumará, em 1997. Em 1998, funda, em parceria com Carlos Ribeiro e outros escritores, Iararana – Revista de arte, crítica e literatura, periódico de divulgação da geração 80. Em 1999, transfere-se para a Universidade Estadual de Feira de Santana, integrando-se ao grupo fundador do curso de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural (PPgLDC), tendo já orientado várias dissertações concluídas.

Em 2003 leciona, como professor convidado, na Universidade de Artois (França). Neste ano e nos seguintes faz palestras nas Universidades: Sorbonne Nouvelle, Nanterre, Artois, Rennes, Toulouse Le Mirail (França) e ELTE (Budapeste). Tem participado de diversos eventos universitários e culturais em vários estados do país. Em 2001 publica o livro de contos O desterro dos mortos. Nesse ano recebeu o Prêmio Nacional Herberto Sales – Contos, da academia de Letras da Bahia, com o livro O canto de Alvorada, publicado em 2003,com 2ª edição em 2004, pela Editora José Olympio. Em 2005 co-organiza (com o escritor Cyro de Mattos), o livro O triunfo de Sosígenes Costa: estudos, depoimentos, antologia (Ilhéus: Editus; Feira de Santana, UEFS Editora, 2005.), que recebeu o Prêmio Marcos Almir Madeira 2005, da União Brasileira de Escritores-RJ.

Em 2009 completou 50 anos e foi homenageado pelo Lycée des Arènes, em Toulouse-França, com uma exposição de trabalhos de alunos sobre seu livro Les marques du feu. Na Bahia foi homenageado pelo IL-UFBA. Neste mesmo ano, seu romance Nhô Guimarães foi adaptado para o teatro e encenado em Salvador e outras cidades. É correspondente da revista francesa Latitudes: cahiers lusophones. Desde 2005, pertence à Academia de Letras da Bahia, ocupando a cadeira nº 20. É membro da UBE-São Paulo e do PEN Clube do Brasil.

Livros de poesia, ensaio, contos e romance:

  • Movimento de Sondagem. Salvador; Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981. “Coleção dos Novos, vol. 2 – série Poesia”

  • O espelho da consciência. Salvador: Gráfica da UFBA, 1984

  • Teoria particular (mas nem tanto) do poema — ou poética feita em casa. São Paulo: Edições D’Kaza, 1994

  • Enredo romântico, música ao fundo. (ensaio) Rio de Janeiro: 7 Letras, 1996

  • Oitenta: poesia e prosa. Coletânea comemorativa dos 15 anos da “Coleção dos Novos”. Salvador: BDA-Bahia, 1996. (org. Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro)

  • Jaú dos bois e outros contos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997

  • Rotas e imagens: literatura e outras viagens. Feira de Santana: UEFS/PPGLDC, 2000. (Org. Aleilton Fonseca e Rubens Alves Pereira)

  • O desterro dos mortos (contos) Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001

  • O canto de Alvorada (contos). Rio de Janeiro: José Olympio, 2003

  • O triunfo de Sosígenes Costa. Ilhéus: Editus, 2004. (Org. Cyro de Mattos e Aleilton Fonseca)

  • As formas do barro & outros poemas. Salvador: EPP. 2006

  • Nhô Guimarães (romance). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006

  • Todas as casas (contos, livro coletivo). Salvador: EPP, 2007

  • Les marques du feu et autres nouvelles de Bahia. Paris: Lanore, 2008. (Tradução de Dominique Stoenesco)

  • Guimarães Rosa, écrivain brésilien centenaire. Bruxelas, Librairie Orfeu, 2008

  • O olhar de Castro Alves. (org.). Salvador: ALB/ALBA, 2008

  • O pêndulo de Euclides (romance). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009"


Disponível em: http://www.academiadeletrasdabahia.org.br/Academicos/aleilton.html



[1] Apelido que dei à minha mãe.


24 de dezembro de 2009

Feliz Natal!!!!!!!!!


Venho trazer ao leitores do Pesponteando meu carinho nesta data tão significativa...

"Sugestões de presentes para o Natal: Para seu inimigo, perdão. Para um oponente, tolerância. Para um amigo, seu coração. Para um cliente, serviço. Para tudo, caridade. Para toda criança, um exemplo bom. Para você, respeito."(Oren Arnold)

Desejo a vocês um Natal com o Menino Jesus e não só com o Papai Noel...Boas Festas...

Feliz Natal e próspero Ano Novo!

bjs............Paula

17 de dezembro de 2009

comecei minha construção...




LIVRO: A TROCA


Lygia Bojunga


Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram casa e comida.

Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede, deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro e fazia telhado.

E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro.

De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.

Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.

Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas. Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação.

Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga assim toda cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era só escolher e pronto, o livro me dava.

Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que no meu jeito de ver as coisas é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava.

Mas, como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia de alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra em algum lugar uma criança juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar.


(Mensagem de Lygia Bojunga para o Dia Internacional do Livro Infantil e Juvenil, de 1984, traduzida e divulgada nos 64 países membros do IBBY).


Resolvi esta semana retirar a gramática do armário e encontrei o texto acima por entre as folhas. Não me lembro ao certo, mas creio ter sido distribuído por uma professora da faculdade que trabalhou conosco uma discíplina sobre leitura... resolvi partilhar!

27 de novembro de 2009

MEMÓRIAS DO CATIVEIRO: VIVÊNCIAS E RESISTÊNCIAS DA MULHER NEGRA



SOUZA, Paula Ivony Laranjeira de. Memórias do cativeiro: vivências e resistências da mulher negra. In: História: Sujeitos, Saberes e Práticas. 29/07 a 01/08 de 2008, Vitória da Conquista - BA: UESB, Anais Eletrônicos IV Encontro Estadual de História ANPUH-BA. Dispovível em: http://www.uesb.br/anpuhba/anais_eletronicos/paula_laranjeira.pdf Acessado em: 27/11/09.

A partir da segunda metade do século XX começam a surgir vários movimentos negros como: Gens, Quilombhoje, Negrícia, que possibilitaram uma maior discussão sobre o negro e conseqüentemente maior desenvolvimento da literatura afro, seja através dos Cadernos Negros, de algumas editoras ou através de publicações independentes. Mas apesar do reconhecimento cada vez maior, dentro e fora do país, de autores que trabalham com temáticas negras, ainda há um longo caminho até o reconhecimento da excelência da literatura afro-brasileira, que poderia ser citada apenas como literatura, pois o termo literatura afro gera uma espécie de segregação “sob a capa de aparente valorização” (Domício Proença Filho apud DUARTE, 2002, P. 49), no entanto, Miriam Alves atesta, “o que nós poetas negros vivemos hoje não é um gueto. Gueto é quando se é segregado pelos outros. Hoje nós vivemos o quilombo; a revolta que nós mesmos provocamos (...)” (apud LOLBO, 1993, p. 162).


Na literatura, grande espaço tem sido reservado a discussões e debates teóricos sobre a temática negra. O que observa é que tem-se ao longo do tempo uma tradição literária marcada por uma escrita masculina e branca, que reservava a mulher apenas o papel de coadjuvante, papéis estes, estereotipados, e cujas obras produzidas só poderiam ser publicadas mediante o uso de pseudônimos. Com exceção, destaca-se Maria Firmina dos Reis, no século XIX, com o lançamento de “Úrsula”, o primeiro romance abolicionista. E apesar da autora viver num contexto de extrema segregação racial e social, apresenta em Úrsula uma visão positiva do negro, sem os preconceitos raciais e os estereótipos comuns em seu tempo. Além disso, ela denuncia o cerceamento e as agressões de que a mulher brasileira era vítima; e no século XX, mais precisamente na década de 60, Carolina Maria de Jesus, com o sucesso internacional de Quarto de despejo, no qual relata em forma de diário a própria história – de uma mulher pobre, negra, favelada, com pouco estudo, mas que consegue em uma semana vender dez mil exemplares do seu livro.


Já na Contemporaneidade destaca-se Conceição Evaristo, que em sua infância foi da favela, e na juventude trabalhava para poder estudar e realizar o sonho do magistério. Devido à paixão pela literatura, alimentada na infância pelas histórias que a mãe contava, fez o curso de Letras. Em 1980 ela conhece o Grupo Quilombhoje e a série Cadernos Negros, nos quais passa a publicar poesias e contos. Sua escrita poética fala do cotidiano dos excluídos, misturando violência e sentimento, realismo cru e ternura, revelando assim, o compromisso e a identificação da intelectual afro-descendente com os irmãos colocados à margem do desenvolvimento (DUARTE, 2006). No que se refere, a narrativas longas, lança Ponciá Vicêncio, e nos fará junto à personagem que dá nome ao romance, percorre através da memória, a luta de uma mulher pela liberdade bem como todo o processo diaspórico pelo qual o negro trilhou desde a escravidão. É interessante observar que a literatura negra brasileira contemporânea, de acordo com Luiza Lobo (1993, p. 193), tem como marca construir o passado através da memória, mas para isso faz uma separação entre o plano real e o ficcional. O primeiro se divide entre o imaginário e o simbólico, ao passo que no plano ficcional há uma tendência para o biografismo mimético. Sem contar a existência de obras, que se colocam no plano real histórico, seria este o caso de “Ponciá Vicêncio”, que através de um narrador onisciente, traz uma narrativa em 3ª pessoa, com um enredo não-linear, trabalhando um contexto histórico-social onde realidade e ficção se misturam apresentando uma mulher corajosa, mas que padece os infortúnios da escravidão, os quais recebe em herança da cor que possui.


A partir da década de 80, no século passado, se dá o “boom da memória”, a humanidade começa a valorizar seu passado, seus heróis, suas construções arquitetônicas. Livros e filmes foram lançados, no entanto, os africanos e afro-descendentes, especialmente, as mulheres negras ficam mais uma vez à margem, não se lançam filmes apresentando o heroísmo dos negros. Mas ao partilhar as lembranças individuais da sua personagem, a autora exibe a memória coletiva de um povo. Usando uma linguagem simples, personagens envolventes vão aos poucos habitando o leitor, deixando marcas, fazendo-o reconhecer lugares, situações e momentos da vida, como memórias necessárias para construir segundo Huyssem (2000), futuros locais diferenciadas num mundo global.

Nesse sentido observe:

“Bom que ela se fizesse reveladora, se fizesse herdeira de uma história tão sofrida, porque enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem que fosse pela força do desejo, a criação de um outro destino (...) A vida era um tempo misturado do antes-agora-depoise-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.” (EVARISTO, 2003, p. 130-131)


Ponciá morava em uma localidade junto com ex-escravos e seus descendentes, que foram contemplados pela lei do Sexagenário, Lei do Ventre livre e por fim pela Lei Áurea, mas que continuavam “escravos”, “efeitos de uma liberdade assinada por uma princesa, fada-madrinha, que do antigo chicote fez uma varinha de condão. Todos, ainda, sob o jugo de um poder que, como Deus, se fazia eterno”(p. 48). O pai e o irmão trabalhavam para o exdono de seu avô, e ela junto com a mãe fabricavam objetos de barro, que eram vendidos a preços irrisórios. Era uma vida simples, sem grandes perspectivas, fato que causava inquietação em Ponciá. E é por isso, que ela se opondo ao destino que lhe era imposto, após a morte do pai, larga a família e vai para a cidade grande tentar uma vida “melhor”, e contrariando as expectativas não se torna prostituta. Na cidade trabalha como doméstica, compra a sonhada casa com o objetivo de trazer a mãe e o irmão para ficarem a seu lado. Mas ao voltar a seu povoado não os encontra mais, isto porque seu irmão também foi para a cidade na tentativa de encontrá-la. Sem saber do paradeiro da irmã, Luandi Vicêncio, um rapaz analfabeto, negro, se torna soldado. Já a mãe de Ponciá, passa a perambular pelos arredores das comunidades circunvizinhas buscando encontrar os filhos. E por conta de uma inquietação interior, a personagem principal – Ponciá -, não consegue se sentir feliz nem livre. Dessa forma, Conceição Evaristo apresenta em Ponciá Vicêncio vários heróis do cotidiano.


A autora traz para o leitor uma mulher negra, que até a adolescência tem sonhos e desejos. Mas, também, apresenta as mazelas de um país escravocrata, que após dar a “liberdade” ao povo negro, o torna cativo:


“Há tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presente de libertação. E, como tal, podiam ficar por ali, levantar moradia e plantar seus sustentos. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas terras do Coronel Vicêncio (...)”. (EVARISTO, 2003, p. 48)


O trecho acima é constatado por Hebe M. Mattos (1998, p. 284-287), em seus estudos sobre a visão de liberdade no sudeste do Brasil do século XIX, onde o desejo de ex-senhores era que o liberto ficasse sobre a tutela do Estado e esse os forçasse a trabalhar de acordo as exigências dos antigos donos. Ela ainda acrescenta:


“Nos últimos meses da monarquia e ainda na primeira década republicana, os
ex-senhores continuavam a tentar acionar sua ascendência sobre os homens nascidos livres, seus dependentes, bem como sua influência sobre as autoridades locais, para forçar os libertos a tomar contrato de trabalho” (MATTOS, 1998, p. 284)


E é justamente essa liberdade prometida que a personagem central não sentia. É possível destacar na narrativa seu inconformismo num espaço rural, marcado pela subserviência e despersonalização, e as suas frustrações num espaço urbano, lugar de sonhos e aspirações. Por isso, experimentava um sentimento indizível, silêncios, emoções que deveriam ser ditos, mas que ela prefere não dizer, já que seus vazios não podem ser preenchidos com qualquer substância, o que ela precisava era sair do cárcere social, se sentir sujeito, já que até então vivia asujeitada pela condição em que nasceu. “(...) ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra nova vida.” (EVARISTO, 2003, p.82).


Levando em conta o conceito de culturas nacionais de que fala Stuart Hall (2000, p. 47-65), é possível entender porque “Ponciá” não consegue sentir-se em si mesma. As culturas nacionais ao serem construídas devem causar na “nação” um sentimento de pertencimento, levando o sujeito a identificar-se com os mitos de origem, cenários, rituais nacionais, perdas, triunfos, etc. A personagem central não consegue identificar-se nem com o próprio nome, - Vicêncio – que indica seu pertencimento ao Coronel Vicêncio. Muito menos sente “(...) a posse em comum de um rico legado de memórias..., o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva a herança que recebeu”(RENAN, 1990, p. 19 apud Hall, 2000, P. 58). O legado memorialístico dessa personagem vem da África, já que o do Brasil é tortuoso, o que a leva, a não se sentir parte da cultura nacional, além disso, a herança que recebeu de seus pais é deveras dolorosa para querer perpetuar.


Assim, no decorrer da narrativa o leitor vai conhecendo através da memória dessa mulher - a voz menina que cantava suas lembranças - o processo de diáspora que conduz o da senzala à favela: o período da escravidão: “Era pajem de Sinhô moço(...)Era o cavalo onde o mocinho galopava(...)o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu.”(p. 14); o não cumprimento das leis e a alforria encenada “Se eram livres, por que continuavam ali?” (p.14); o desejo de liberdade ”não queria ficar ali repetindo a história dos seus”(p. 38); o encarceramento da pobreza; ao passo que apresenta também a cultura, com suas lendas “menina que passasse por baixo do arco-íris virava menino”(p. 9); a valorização dos mais velhos como fonte de saberes; as experiências, vivencias...


Neste texto, os leitores são levados a reencontrarem o fio condutor de sua própria história, das raízes tão almejadas desde o Romantismo:


(...) descobrirmos quem realmente somos, a verdade de nossa experiência. Ela é uma arena profundamente mítica. É um teatro de desejos populares (...) de fantasias populares. É onde descobrimos e brincamos com as identificações de nós mesmos, onde somos imaginados e representados (...) para nós mesmos pela primeira vez. (HALL, 2003, p. 348)


Assim sendo, de acordo segue a narrativa, o leitor vai percebendo que carrega dentro de si essa negritude, ou essa africanidade, sentimento que é experimentado graças ao descortinar da memória da personagem principal, aonde a autora vai apresentando ao leitor seus/nossos ancestrais, demonstrando sua humanidade, personalidades, desejos, ímpetos, valores, suas contradições interiores e seu olhar sobre si e sobre o outro, possibilidades estas, de que muitos foram privados de experimentar devido o processo de coisificação a que o negro foi submetido, pois como salienta Ianni (1988, p. 209), a cultura e a ideologia dominante escondem muito, esconde as histórias desumanas, açucara a escravidão, prega a democracia racial, etc.


Na cidade, a personagem em destaque se depara com muitas dificuldades, casou-se com um homem sem sonhos, com o qual passa a dividir a pobreza. Morava na favela, perdeu os filhos que teve, mal tinha o que comer, algumas vezes chegara a apanhar do marido, aumentando assim, seu vazio existencial. Aos poucos, essa mulher foi silenciando seus sonhos e alegrias. Com isso, a autora descreve de forma não linear muitas das dificuldades que a mulher negra passou na pós-abolição, bem como a busca incessante pela identidade. Identidade esta, que a literatura e a expressão afro-descendente muito tem ajudado a ser encontrada. Visto que a reconstrução dessa memória ancestral ajuda o leitor, a alimentar o orgulho étnico e a própria identidade (DUARTE, 2002, p. 52).


Conceição Evaristo traz uma narrativa bem feminina, onde segundo ela,


“(...)o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para além de um sentido estético, busca semantizar outro movimento, ou melhor, se inscreve no movimento a que abriga todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida.”(EVARISTO, 2005, p. 54)


em seu texto a mulher tem o papel de força motriz, é ela quem toma as decisões “Era tão bom ser mulher! Um dia também ela teria um homem que mesmo brigando haveria de fazer tudo que ela quisesse”(p. 24), é quem tem iniciativa, e, em quem todos os sonhos são depositados “a menina um dia sairia da roça e iria para a cidade. Então carecia de aprender a ler”(p.25). Como bem enfatiza Duarte:


“(...)o texto de Ponciá Vicêncio destaca-se (...) pelo território feminino de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado, sim, pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção.” (DUARTE, 2006)


Através da memória do narrador, é possível conhecer muito mais que uma simples narrativa ficcional, é possível perceber o caminhar de um povo em busca de uma identidade usurpada, povo que como no exemplo bíblico, foi retirado da antiga terra para ser escravo e agora busca um lugar seu. Lugar difícil de ser encontrado neste país que prega a democracia racial, e que, ao mesmo tempo, relega a inferioridade os afro-descendentes. Diante da fragmentação a que foram expostos, esses homens e mulheres vão buscando nas histórias que ouvem dos mais velhos o elo perdido com a mãe África, ao poucos retiram da oralidade sua cultura, religiosidade, seu passado real, não este de ex-escravos. Esta costura de retalhos feita por Conceição Evaristo, gerou “Ponciá Vicêncio”, uma história “despojada de liberdade, mas não de consciência”(DUARTE, 2006), que nos leva a salvar do esquecimento e/ou cárcere provocado por este mundo imediatista, a essência de que somos feitos.



Posteriormente á data de publicação foram feitas mudanças, e cada vez que leio sempre encontro algo novo para ser retirado ou acrescentado. Ao utilizar os textos do blog favor citar fonte.

23 de novembro de 2009

Só na vontade...


Às vezes tenho vontade de ter em mim o riso solto, cheio de escândalo e verdade, com gosto de ninguém é mais feliz do que eu;
Ás vezes tenho vontade da lágrima caindo no rosto, expressão da dor sentida, cheia de pesar e tristeza, com gosto de eu preciso de um ombro;
À vezes tenho vontade de ter asas imensas, que dê voos rasantes e que plaine sobre sobre as colinas, cheias de liberdade, com gosto de não podem me pegar;
Às vezes tenho vontade de dar passos, deixar pegadas e me levar para longe, cheios de tudo posso, com gosto de ir e vir;
Às vezes tenho vontade de ser palavra, que tudo relata, que cala e se faz secreta, cheia de possibilidades, com gosto de eternidade;
Às vezes tenho vontade de ser silêncio, que nada diz, cheio de tantas coisas, com gosto de mistério insondável;
Às vezes tenho vontade de ser verdade...
Às vezes tenho vontade de ser mentira...
Às vezes tenho vontade de ser milagre!

Paula Ivony Laranjeira

16 de novembro de 2009

Clara, Claridade, Clarice Lispector: cheia de luz literária

Clarice Lispector, o sol escuro do Brasil

16/11/2009

The New York Times
Tomás Eloy Martinez

Clarice Lispector, em foto de 1976

Há pouco mais de meio século, a força de transformação da literatura da América Latina assombrava os países centrais, que haviam alcançado a modernidade graças ao desenvolvimento de suas indústrias, suas descobertas tecnológicas, suas redes de comunicação, seus trens e aviões. Mas sua linguagem e sua capacidade de narrar a sociedade estavam apergaminhadas, cansadas, e supriam a falta de ideias e sangue novos com jogos teóricos que não levavam a lugar nenhum. Na América Latina, o afã de criar esse mundo novo expresso pela revolução cubana parece ter se concentrado na literatura.

Enquanto os países do Rio da Prata, México e Colômbia respiravam a plenos pulmões os novos ares, o gigante Brasil mantinha-se impermeável a tudo o que não vinha de si mesmo. O Brasil mudava de pele, mas se alimentava de sua própria música e de sua própria herança literária. Certa vez perguntaram a João Gilberto por que ele fazia tão poucos shows no estrangeiro, onde sua música tinha um sucesso clamoroso.

"Para quê?", respondeu. "No Brasil meu público é tão numeroso como no resto do mundo e, além disso, ele me escuta com mais felicidade".

Em meados do século 20, o grande nome da literatura brasileira continuava sendo o de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), que escreveu uma sucessão de obras mestras mediante o simples recurso de observar atentamente a paisagem interior dos pensamentos e dos sentimentos para contá-los de uma maneira incomum, inesperada. Um de seus maiores herdeiros é João Guimarães Rosa, que impressiona mais do que tudo por seu virtuosismo verbal e pelo ouvido finíssimo com que capta a música das vozes do sertão, no nordeste profundo de seu gigantesco país.

Entretanto, a única filha direta e legítima de Machado de Assis é Clarice Lispector, cuja obra misteriosa começa a difundir-se nos Estados Unidos com tanto ímpeto quanto a de Roberto Bolaño. O chileno foi consagrado pela revista The New Yorker, e o influente The New York Review of Books rendeu tributo a Lispector com um ensaio extenso de Lorrie Moore, a jovem deusa do minimalismo.

Moore adverte que a fama magnética de Lispector se deve em parte aos estudos sobre sua obra reunidos por Hélène Cixous, a quem as universidades francesas devem o apogeu dos estudos sobre a mulher. Na França, recorda Cixous, a extraordinária abstração da prosa de Lispector fez com que a vissem como uma filósofa. Quando ela assistiu a um encontro de teóricos sobre sua obra, abandonou a sala na metade da homenagem, dizendo que não entendia uma só palavra do jargão.

Uma das primeiras vezes que se ouviu falar de Lispector em Buenos Aires foi no final dos anos 70, quando circulou a lenda de que ela havia se queimado viva em sua casa no Rio de Janeiro.

Em 1969 o mítico editor argentino Paco Porrúa havia publicado na editora Sudamericana alguns de seus livros: os romances "A Maçã no Escuro", "A Paixão Segundo G.H." e "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", assim como os admiráveis contos de "Laços de Família". Lispector rompia com todas as convenções da arte de narrar e arrancava de cada palavra um tremor secreto, enigmático. Suas revelações eram como as de um teólogo oriental participando de uma dança ritual africana.

Quando a lemos, deslumbrados, na revista "Primera Plana", pensamos que era imperativo viajar para o Rio de Janeiro para decifrar seus segredos. Sara Porrúa, que na época era mulher de Paco, quis ser a primeira nessa busca.

As primeiras notícias que enviou dissipavam a fábula de que Lispector fora queimada viva. Sua cama havia se incendiado acidentalmente quando dormiu com um cigarro aceso. Mas a haviam resgatado a tempo. Sua estranha beleza tártara (os olhos amendoados e rasgados, as maçãs do rosto salientes, a constante expressão de angústia de seu rosto) havia desaparecido quando queimou o lado direito do corpo, imobilizando-lhe o braço. Nada, entretanto, apagava sua paixão por narrar o mundo.

Sara a encontrou mais algumas vezes e, com sua imagem intensa, inesquecível, perdeu-se nas selvas da Guatemala e transformou-se em personagem de Cortázar.

Dar uma ideia de sua imaginação só é possível através de algumas citações. O começo do romance "Uma Aprendizagem..." (1969) é uma frase que vem do nada. A porta de entrada desse livro é uma vírgula: ", estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava o serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos...".

Antes desse comentário doméstico e trivial, Lispector surpreendeu o leitor com uma advertência que é também uma afirmação de seu ser:

"Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte que eu. C.L."

E no final de "Água Viva", ergue a voz: "Não vou morrer, ouviu, Deus? Não tenho coragem, ouviu? Não me mate, ouviu? Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde. Vou ficar muito alegre, ouviu? Como resposta, como insulto".

Seu desmedido desafio à morte impregna muitas das crônicas reunidas em "Revelación del Mundo", que incluem todas as que escreveu para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. Outras, inéditas, serão publicadas no ano que vem em espanhol sob o título de "Descubrimientos".

Lispector continua sendo um enigma velado que assombra em cada frase, em cada desvio da vida. Morreu aos 57 anos de um câncer nos ovários, depois de ter passado os últimos anos fechada na solidão de sua casa do Leme, perto das areias de Copacabana.

Seu autorretrato cabe em uma frase: "Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa".

* Tomás Eloy Martínez: Analista político e escritor, o argentino Tomás Eloy Martínez é autor de livros como "Vôo da Rainha" e "O Cantor de Tango".


Tradução: Eloise De Vylder

Disponível em: http://noticias.uol.com.br/blogs-colunas/colunas-do-new-york-times/tomaz-eloy-martinez/2009/11/16/ult7201u13.jhtm acessado em 16/11/09

É por este é um blog que se valer da literatura para existir que resolvi partilhar com vocês o texto acima, matéria de um jornal internacional. Aguardo comentários...bjs

5 de novembro de 2009

Vida de espera

Valmir (de vermelho e livro no colo) durante a premiação

Por: Valmir Henrique de Araújo


"Eu prometi nada dizer dessa experiência. Manteria segredo.

Jurei obedecer ao nosso pacto. Tal o início no Éden. Mas vazou.

Desde pequeno já lhe admirava. Não poderia ousar, senão olhos pidões, a boca encharcada de saliva.

Cresci apressado no desejo de chegar até você. Maldizia os rapazes que lhe rodeavam até conseguir o que queriam.

Acompanhava as tentativas deles. Via como organizavam filas. Apostavam que seria o vencedor. Achava intolerável aquilo.

Eles faziam comércio. Como poderia eu, então, lhe imputar culpa? Eu lhe achava a mais linda das mais lindas. Para mim, tudo que eles tramavam era indigno. Era você sozinha para servir a todos.

Com as varas deles nas mãos enfiavam em você. Via como suas lágrimas escorriam. Os urros deles quando você cedia. E quando você resistia? Eles atiravam pedras em reiteação aos julgamentos bíblicos.

As tentativas de trepadas deles em você eu as acompanhei todas. Caiam, eu via. Mas eu não. Não cairia. Tinha o exemplo deles. Saberia a estratégia, o caminho a seguir. Teria uma vida inteira para lhe conquistar. Não tinha pressa em lhe provar. O seu sabor eu já o sentia em seu aroma endereçados para mim em vento leve.

A vida pareceu uma eternidade.

Crescer é uma câmara lenta que a gente tem de tolerar.

Finalmente cresci.

Naquele dia o seu cheiro estivera mais forte. Coisa de estação. A sua e a minha. Você madura. Eu adolescente. Você viçosa. Eu hormônios em erupção. Ânsia nunca dantes sentida, tamanha a força do desejo.

Eu era um animal em fúria, cego. Guiado pelas acesas narinas, fui.

As minhas presas brilhantes, garras afiadas.

Eu estava bem próximo a você quando se deu a mudança, o eclipse, a metamorfose, religiosa transubstanciação. Asas de felino, faro de pássaro. Colibri ao redor das flores, sanhaçu direto aos frutos.

Como no tempo de infância, tateei seus pés, fortes raízes. Minhas mãos vestidas em adolescência, virgens de aventuras despiram-se em sua pele áspera.

Ia aos poucos. Não seria apressado animal, o símio dos primeiros tempos, apenas trepar. Tentava refrear meus impulsos. Tornaria a escalada uma odisséia. Preservado cada momento.

Minhas mãos avançavam. O seu robusto e voluptuoso corpo. O seu aroma me invadia.

Subi como pude.

Fincava as unhas.

Meu rosto colado em sua tez.

A princípio as pernas trêmulas. Com o tempo pernas e braços perderam a composição. Não estava mais em mim. Apenas a pulsação. Meu sangue guiado ainda e sempre pelo aroma. Em combustão as minhas veias.

A cada tentativa crescia o êxtase. As mãos em calos, desnudas, ousavam ir a cada vez mais acima. Desfolhava as partes cobertas...

Até que enfim, eu morto em seus braços. Eu separado de mim, apenas alma. Somente o seu corpo e o meu, a pele toda suor e seiva e o meu espírito pairava por sobre em contemplação.

Deitei-me em seus galhos mais fortes, exausto.

Certo de que não cairia, estiquei o braço ao fruto, antes horizonte. Fruto proibido, tamanho o desejo.

E a manga, abraçou-me rosa. Ofereceu-se aberta pele e carne. E em caldas, fez-se suspiro em minha boca, deserto de toda uma vida de espera."

TANTA ESPERA POR UMA MANGA...RSRS


Texto participante do I Concurso de contos e poemas da Cooperativa Cultural do Rio Grande do Norte.

Agradeço ao autor Valmir, que cedeu um dos seus textos para ser publicado no Pesponteando...



22 de outubro de 2009

memórias de minha vó


Falando em histórias, me lembrei de como Madrinha estimulava nossa capacidade imaginativa. Às vezes, ficava horas sentada na área observando as nuvens e suas variadas formas de gente, bicho, e outras coisas... E sempre nos convidava a encontrar outras formas...Seus olhinhos brilhavam naquela mágica brincadeira que tanto contribuiu para minha imaginação. Hoje olho as nuvens e tento encontrá-la.



Estou sempre trabalhando com memórias. Descobri há algum tempo que gosto de tudo que ficou para trás. Tudo que já não existe mais, ou, se existe, é pouco valorizado e/ou colocado à margem. Gosto de músicas de décadas passadas, de filmes que todos já viram e não é mais novidade, de pessoas mais velhas, de fotos antigas, de histórias da infância, de a juventude dos meus pais e avós, e de como a vida era antes da percepção do mundo que tenho hoje. É, acho que sou uma nostálgica! Hoje minhas pesquisas literárias se embrenham pelas vias da memória, e cada vez mais fico fascinada...

Estou entre teoria e prosa como quem fica na junção de café e leite. Sou o novo líquido! Falando em café com leite, me lembrei da minha avó materna, Maria Francisca, uma senhora baixinha, branquinha, de cabelos branquinhos e muito boazinha...e que não conhecia dinheiro. Bem, ela ao cuidar dos netinhos sempre fez questão de alimentá-los com café-de-leite! Era cada "copão"! Apesar de alguns dos meus primos, os mais novos, terem a mordomia da big mamadeira, com um hiper furo no bico para que o líquido descesse mais rápido. Minha vozinha andou nos últimos tempos de vida a caducar. Penso eu, que ela resolveu fazer o que não podia durante toda a vida. Cortou o cabelo curtinho, falava besteira, pintava as unhas, e até resolveu depilar as pernas, coisa que nunca faria se estivesse em sã consciência. Eta falta de memória revolucionária!

Nós a chamávamos de madrinha Nenén. Confesso que houve um tempo em que eu andei meio chateada com ela, isso láaaaaaa na infância, pois cada dia aparecia com um novidade em remédios caseiros para tentar a minha cura física. Certa vez, ela conseguiu um óleo que depois de passado secava e deixava uma aparência de “caca” de vaca. Ela inventava, minha mãe passava e eu chorava....kkkk...mas com o tempo, ela desistiu...Aí que alívio!

Minha vó faz parte do emaranhado de imagens que compõem a minha memória. Na verdade, acho que todo meu interesse por essa temática é coisa dela. Suas histórias, sua vida, e minha saudade. Dela tenho muitas histórias que algum dia se transfigurarão em escrita. Falando nisso, anos atrás, quando entrei na faculdade, li um conto de Aleilton Fonseca, In Memorian, que falava de uma avozinha muito especial, tão quanto a minha. Chorei como um bebê. E fiquei imaginando quantas avozinhas como a minha existem por aí...


Paula Ivony Laranjeira

4 de outubro de 2009

Dedos de prosa com o amigo Rosa


Fala, Rosa, quero ouvir suas sagas. Os teus bois. A tua-nossa gente pede passagem.
Nas Gerais percorro o teu caminho, costurando os retalhos da sua-nossa gente à minha-sua gente.
Teus amores me inebriam, me encantam e me arrancam suspiros. Devoro as letras e anseio pular as páginas, mas não o faço, pois temo perder os detalhes nos quais deleito.
Me perco nas matas, nas estradas nesse teu sertão das Gerais. E descubro a astúcia, a sabedoria dessa gente sem diploma.
Sabe, Rosa, estou mais confusa. E bois falam? Os teus falam. Às vezes me sinto boi, animal irracional, levado de um lado para o outro, presa no cabresto, mas meus olhos não "babam" mais, secaram como a terra do meu-nosso sertão. Secaram... E quando essa baba dos olhos seca a gente fica numa agonia sem tamanho.
mas mudando de assunto, queria te apresentar um amigo meu, gente do sertão também, mas do sertão da Bahia, o Aleilton, home de minha estima, cê precisa de vê, ele escreve essas coisas da gente que é uma belezura. mas tem hora que ele escreve coisa muito triste, que até faz chorar.
Sabe, Rosa, a prosa tá boa, mas tenho que terminar de ler Sagarana, um dos livros do grande João Guimarães Rosa.

Paula Ivony Laranjeira


Sagarana, obra que apresenta a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, rendeu a Giumarães Rosa vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana traz a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor transpôs a linguagem rica e pitoresca do povo, registrou regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira.- Fundação Guimarães Rosa -

Biografia:

"João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908 e era o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias.

Joãozito, como era chamado, com menos de 7 anos começou a estudar francês sozinho, por conta própria. Somente com a chegada do Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, em março de 1917, pode iniciar-se no holandês e prosseguir os estudos de francês, agora sob a supervisão daquele frade.

Terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; em Belo Horizonte, para onde se mudara, antes dos 9 anos, para morar com os avós. Em Cordisburgo fora aluno da Escola Mestre Candinho. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime de internato, visto não ter conseguido adaptar-se — não suportava a comida.

De volta a Belo Horizonte matricula-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães e, imediatamente, iniciou o estudo do alemão, que aprendeu em pouco tempo. Era um poliglota, conforme um dia disse a uma prima, estudante, que fora entrevistá-lo:

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.

Em 1925, matricula-se na então denominada Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, com apenas 16 anos. Segundo um colega de turma, Dr. Ismael de Faria, no velório de um estudante vitimado pela febre amarela, em 1926, teria Guimarães Rosa dito a famosa frase: "As pessoas não morrem, ficam encantadas", que seria repetida 41 anos depois por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.

Sua estréia nas letras se deu em 1929, ainda como estudante. Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930, alcançando o autor seu objetivo, que era o de ganhar a recompensa nada desprezível de cem contos de réis. Chegou a confessar, depois, que nessa época escrevia friamente, sem paixão, preso a modelos alheios.

Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes. Dura pouco seu primeiro casamento, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda em 1930, forma-se em Medicina, tendo sido o orador da turma, escolhido por aclamação pelos 35 colegas.

Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, pequena cidade que pertencia ao município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos. Relaciona-se com a comunidade, até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por "seu Nequinha", que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi.

Espírita, "Seu Nequinha" parece ter sido o inspirador da figura do Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem de Grande Sertão: Veredas.

Diante de sua incapacidade de por fim às dores e aos males do mundo numa cidade que não tinha nem energia elétrica, segundo depoimento de sua filha Vilma, o autor, sensível como era, acaba por afastar-se da Medicina. Contribuiu também para isso o fato de o escritor ter que assistir o parto de sua mulher, pois o farmacêutico e o médico da cidade vizinha de Itaúna só terem chegado quando Vilma já havia nascido.

Guimarães Rosa, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, trabalha como voluntário na Força Pública. Posteriormente, efetiva-se, por concurso. Em 1933, vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – "quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação". Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco.

Um amigo do escritor, impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o segundo lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de "vocação" para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:

Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre 'après avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.

Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas Magma recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de "Viator", concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado Contos, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em Sagarana, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira.

Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar.

Embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D. Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém.

Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência."

Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas Estórias. O conto se refere à experiência de "morte parcial" vivida pelo protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela asfixia resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas).

Em dezembro de 1945 o escritor retornou ao Brasil depois de longa ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina.

Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.

Em 1948, o escritor está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração.

De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951 é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador).

Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 1951. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: Com o vaqueiro Mariano. Segundo depoimento do próprio Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava "ele perguntava mais que padre" –, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias...

Em ensaio crítico sobre Corpo de Baile, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada Campo Geral, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.

Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas Corpo de Baile, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão: Veredas, lançado em maio de 56. O terceiro livro de Guimarães Rosa, uma narrativa épica que se estende por 600 páginas, focaliza numa nova dimensão, o ambiente e a gente rude do sertão mineiro. Grande Sertão: Veredas reflete um autor de extraordinária capacidade de transmissão do seu mundo, e foi resultado de um período de dois anos de gestação e parto. A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa. Para Renard Perez, autor de um ensaio sobre Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, além da técnica e da linguagem surpreendentes, deve-se destacar o poder de criação do romancista, e sua aguda análise dos conflitos psicológicos presentes na história.

O lançamento de Grande Sertão: Veredas causa grande impacto no cenário literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas línguas e seu sucesso deve-se, sobretudo, às inovações formais. Crítica e público dividem-se entre louvores apaixonados e ataques ferozes. Torna-se um sucesso comercial, além de receber três prêmios nacionais: o Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmen Dolores Barbosa, de São Paulo; e o Paula Brito, do Rio de Janeiro. A publicação faz com que Guimarães Rosa seja considerado uma figura singular no panorama da literatura moderna, tornando-se um "caso" nacional. Ele encabeça a lista tríplice, composta ainda por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores romancistas da terceira geração modernista brasileira.

Ainda que não publicasse nada até 1962, o interesse e o respeito pela obra rosiana só aumentavam, em relação à crítica e ao público. Unanimidade, o escritor recebe, em 1961, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Ele começa a obter reconhecimento no exterior.

Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.

Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve para os pais:

Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, na copa da alta árvore pegada à casa, uma tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.

A partir de 1958, o autor começa a apresentar problemas de saúde e estes seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:

... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.

É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), religião cristã criada nos Estados Unidos em 1866 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirma a primazia do espírito sobre a matéria – "... the allness of Spirit and the nothingness of matter", a qual habilita compreender a nulidade do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte, diante da totalidade do Espírito.

Em 1962, é lançado Primeiras Estórias, livro que reúne 21 contos pequenos. Nos textos, as pesquisas formais características do autor, uma extrema delicadeza e o que a crítica considera "atordoante poesia".

Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois, no dia 16 de novembro de 1967.

Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes.

Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do país.

No meio do ano, publica seu último livro, também uma coletânea de contos, Tutaméia. Nova efervescência no meio literário, novo êxito de público. Tutaméia, obra aparentemente hermética, divide a crítica. Uns vêem o livro como "a bomba atômica da literatura brasileira"; outros consideram que em suas páginas encontra-se a "chave estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didático de sua criação".

Três dias antes da morte o autor decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que viveu."

O escritor faz seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras com a voz embargada. Parece pressentir que algo de mal lhe aconteceria. Com efeito, três dias após a posse, em 19 de novembro de 1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por socorro.

Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a publicar aos 38 anos. O autor, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo."


Disponível em: hhttp://www.releituras.com/guimarosa_bio.asp acessado em 05/10/09