27 de fevereiro de 2011

O elogio da diversidade, Moacyr Scliar


Entre as impressionantes mudanças ocorridas no Brasil, há uma que mereceria um estudo especial, quem sabe até uma tese de mestrado ou doutorado. Nos últimos anos, descobrimos os números, o que é uma verdadeira revolução para um país que, durante muito tempo, acreditava sobretudo na retórica, nas palavras, domínio de uns poucos privilegiados. Agora, não. Agora, passamos a ter como divisa a frase do cientista Lord Kelvin, segundo a qual tudo que é verdadeiro deve ser expresso em algarismos. Todos os dias recebemos pela mídia uma verdadeira enxurrada numérica, indicadores econômicos, sociais, de saúde. E disso resultam também rankings, lista dos melhores estados, ou municípios, classificados pelo sucesso obtido em áreas que vão desde a produção industrial até o nível educacional.
Nessas várias listas há uma trinca constante, formada por Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Distrito Federal. Peguem, por exemplo, a expectativa de vida, o número de anos que podemos esperar viver. Em primeiro lugar estão o Distrito Federal e Santa Catarina, com 75,8 anos, e logo em seguida, o RS, com 75,5 anos. Tomem a mortalidade infantil. Por causa da fragilidade das crianças, esse é, infelizmente, o indicador clássico para avaliar a situação de saúde. Pois nos quatro melhores estados (São Paulo entra aí também) está a nossa trinca, RS, SC, DF, todos bem abaixo da média nacional.

"O emigrante é um cara que luta: luta para sobreviver, luta por melhores condições de vida, luta para educar seus filhos. E frequentemente vence".
Vamos para uma outra área, a educacional. Recentemente foram divulgados os dados do Pisa (Programme for International Students Assesment, Programa Internacional de Avaliação de Alunos) introduzido pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico, que analisou a situação da educação em 65 países, no que se refere a ciências, matemática e leitura. No caso do Brasil, quem encontramos no topo do ranking dos estados? Distrito Federal, Santa Catarina, Rio Grande do Sul.
Tomemos um indicador mais abrangente, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), composto por expectativa de vida, alfabetização e produto interno per capita; ou seja, saúde, educação, economia. Nos cinco estados mais bem situados (aí entram São Paulo e Rio de Janeiro), está de novo a nossa trinca, DF, SC, RS.
Agora, o que terão em comum os três? Aí entramos no terreno do palpite, mas ouso arriscar uma resposta: a diversidade, populacional e cultural. Rio Grande do Sul e Santa Catarina são estados formados em grande parte por emigração, e o mesmo acontece com Brasília (só que aí é a migração de brasileiros, dos lendários candangos). Ora, o emigrante é um cara que luta: luta para sobreviver, luta por melhores condições de vida, luta para educar seus filhos. E frequentemente vence. Porque o emigrante é aquele cara que não se resignou a ficar onde estava, entregue aos queixumes e às lamentações; não, o emigrante é um cara que, à frente de sua família, foi em busca de uma existência melhor, viajando num pau de arara ou num precário navio. Um cara que chegou a um lugar para ele desconhecido mas que, sem se intimidar, procurou trabalho (e o gaúcho, que ajudou a povoar todo o oeste do país, é um exemplo disso). A combinação da cultura dos emigrantes com as tradições locais funcionou bem nesses três estados, mostrando que o Brasil é o verdadeiro melting pot, aquele panelão de misturas que os Estados Unidos sempre viram, acertadamente, como uma fórmula para o desenvolvimento.
DF, SC, RS: dá para acreditar no Brasil. O que, convenhamos, além de boa notícia, é um verdadeiro presente de ano-novo.

 
Publicada no dia 11 de janeiro de 2011 no caderno Diversão, Correio Brazieliense.
 
Hoje falece o escritor Moacyr Scliar.
 

22 de fevereiro de 2011

O velho Graça e sua amada Heloisa

Como já disse em outras oportunidades, sou uma amante da correspondência alheia. Ao ler aquilo que o outro escreve entro num mundo real, em que o rementente e destinatário estão à mostra, revelando o que de fao são. Isso dentro do universo litarário é melhor ainda, pois podemos ter um contato mais íntimo como os autores que admiramos. Hoje uma carta de Graciliano Ramos àquela que se tornaria sua segunda esposa.


Heloísa,


Chegaram-me as duas linhas e meia que me escreveste. Pareceram-me feitas por uma senhora muito séria, muito séria! muito antiga, muito devota, dessas que deitam água benta na tinta.
Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto desejo de começar esta carta assim: "Exma.Sra.: tenho a honra de comunicar a V. Exa., etc".
Onze palavras! Imagino o que um indivíduo experimenta ao receber onze palavras frias da criatura que lhe tira o sono? Não imaginas. E sabes o que vem a ser isto de passar horas acordado, sonhando coisas absurdas? Não sabe. Pois eu te conto.
Sento-me à banca, levado por um velho hábito, olho com rancor uma folha de papel, que teima em tornar-se branca, penso que o Natal é uma festa deliciosa. Os bazares, a delegacia de polícia, a procissão de Nossa Senhora do Amparo... E depois o jogo dos disparates, excelente jogo. "Iaiá caiu no poço". Ora o poço! Quem caiu no poço fui eu.
Principio uma carta que devia ter escrito há três meses, não posso concluí-la. Fumo cigarros sem contar, olhando um livro aberto, que não leio. Dançam na minha cabeça uma chusma de idéias desencontradas. Entre elas, tenaz, surge a lembrança de uma criaturinha a quem eu disse aqui em casa, depois da prisão do vigário, nem sei que tolices.
Apaga-se a luz, deito-me. O sono anda longe. Que vieste fazer em Palmeira? Por que não te deixaste ficar onde estavas?
Não consigo dormir. O nordeste, lá fora, varre os telhados. Na escuridão vejo distintamente essa mancha que tens no olho direito e penso em certa conversa de cinco minutos, à janela do reverendo. Por que me falaste daquela forma? Desejei que o teto caísse e nos matasse a todos.
Andei criando fantasmas. Vi dentro de mim outra muito diferente da que encontrei naquele dia.
Por que me quisestes? Deram-te conselhos? Por que apareceste mudada em vinte e quatro horas? Eu te procurei porque endoideci por tua causa quando te vi pela primeira vez.
É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor.
Fui visitar o Padre Macedo.
Falou-me de ti, mas o que me disse foi vago, confuso, diante de dez pessoas. É triste que, para ter notícias tuas, minha filha, eu as ouça em público. Foram minhas irmãs que me disseram o dia do teu aniversário e me deram teu endereço.
Tinha razão quando afirmaste que entre nós não havia nada. Muito me fazes sofrer.
É preciso que tenhas confiança em mim, que me escrevas cartas extensas, que me abras largamente as portas de tua alma.
Beijo-te as mãos, meu amor.
Recomendo-me aos teus, com especialidade a dona Lili, que vai ser minha sogra, diz ela. Acho-a boa demais para sogra.

Amo-te muito. Espero que ainda venhas a gostar de mim um pouco. Teu Graciliano.


Palmeira, 16 de janeiro de 1928.



Graciliano e Heloisa

14 de fevereiro de 2011

E se eu fosse eu

"Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como?não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais".
(Texto extraído do livro A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector, editora Rocco, pg. 156). 
Encontrei este fragmento de texto da Clarice Lispector perambulando pela net, e desde então, o que já havia em mim de inquietação, ficou maior ainda...Talvez meu silêncio nos últimos tempos seja uma minúscula fagulha tentando incendiar-me para fazer vir à vida a ave que nasce das cinzas. 
Mas o silêncio é tão grande que já está incomodando. O silêncio tem sido amedrontador. E eu que tanto gosto do silêncio, preciso, neste instante, de multidão, mas uma multidão interna! 
E se eu fosse eu?

Estou certa de que a procura pela lucidez esclarecedora de quem sou me levara a muitas descobertas. Queres entrar nesta caça ao tesouro? Comece:

E se você fosse você, o que faria e o que sentiria?