29 de agosto de 2010

Entrevista com José Maria Dias da Cruz

Por: Paula Ivony Laranjeira

O artista plástico José Maria Dias da Cruz, de 74 anos, autor de livros sobre arte, lecionou de 1983 a 1986 no Museu de Arte Moderna (RJ) e de 1987 a 1999 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ) além disso, fez várias exposições. Desde a infância demonstrou interesse pelo mundo das arte, e graças a seu pai, o escritor Marques Rebelo, conviveu com mestres como Pancetti, Milton da Costa, Iberê Camargo, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti. Mas é o francês Paul Cézanne, que fortemente marca sua vida e seu trabalho. Deste vem as inquietações que movem seu estudo sobre o uso da cor. Mas tal influência também pode ser vista em seus quadros, claro rompimento com o convencional, sem no entanto, perder a suavidade além de ar poético. Nesta entrevista ele fala da sua trajetória, dos seus estudos e nos apresenta um pouco do seu trabalho. Vale conferir.

PILS- Como nasceu o artista plástico José Maria Dias da Cruz?

JMDC- Gostaria de começar esta entrevista com um quadro que marcou o início de meu projeto plástico na década de sessenta. Foi somente na década de noventa que um amigo meu, BobN, ex-aluno, depois meu assistente no Parque Lage, que a imagem do quadro(abaixo) começou a circular, pois ele a colocou na Internet.

Vamos então para as respostas.

Perde-se, pelo tempo, na minha memória. Eu era ainda muito criança e já desenhava compulsivamente. Na casa de meu pai não me faltava papel. Sempre que podia ia para a cidade mineira de Cataguases e ficava na casa de Francisco Inácio Peixoto, um dos fundadores da Revista Verde, em 1927, e fiz da família dele uma extensão da minha. O problema era lá encontrar papel suficiente. Usava, então, as folhas em branco dos livros da biblioteca dele. Aos 12 anos comecei a economizar o dinheiro. Ia a pé para o colégio para economizar. Comprei então as primeiras tintas a óleo e pintei meu primeiro quadro. Tudo foi feito em segredo infantil, pensava eu, mas claro, tanto o meu pai como o Peixoto até que me incentivavam.

PILS- José, o que acontece quando você tem em frente aos olhos uma tela em branco? Em que momento há o vislumbrar da fusão de cores ou imagens?

JMDC- Quando tenho uma tela em branco à frente o quadro já está pronto em minha cabeça. Gosto mais de pensar do que propriamente pintar.

PILS- Como você definiria a cor? Ela é aquilo que vemos ou há algum mistério em sua configuração?

JMDC- Como diz o filósofo Maturana, vemos o que não vemos. Daí Klee ter dito que o pintor torna visível o que se esconde. O mais complexo é que a cor não se deixa racionalizar, não obstante nos permite pensar inserida numa lógica nada absurda. Entretanto em relação a ela sentimo-nos limitados, pois além do mais ela é enigmática.

PILS- Em nossas conversas, você falou algumas vezes sobre seu objeto de estudo, Cézanne. Como nasceu o interesse por este artista?

JMDC- Desde cedo ficava horas tentando compreender um quadro. Tanto o meu pai como o Peixoto tinham bons livro sobre artes plásticas. Cézanne me intrigava, pois não o compreendia. Somente quando fui estudar em Paris com Emílio Pettoruti que ele me vez ver o que não compreendia, sem, contudo, me dar uma explicação convincente. Daí veio a paixão. Fez-me ver também outros pintores, como Ticiano, Poussin, Chardin, e Braque. Pettoruti também me mostrou como eram fracos como pintores artistas que eram considerados gênios, como Matisse e Picasso. Este último hoje inclusive é uma grife. Mostrou-me, em compensação, Braque, este artista ainda tão pouco estudado. Além de pintor foi também um intrigante pensador. Os pensamentos de Braque marcaram-me muito.

PILS- Fale-nos um pouco sobre Cézanne.

JMDC- Comecei a estudá-lo cedo, mas não o compreendia. É um artista muito complexo. Há uma frase de Cézanne na qual ele diz que devemos “Tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro [...].” Nas histórias das artes se substituía o cone pelo cubo. Levei tempo para entender que realmente não poderia se basear no cubo, pois ele disse que no espaço todos os objetos são convexos, o que excluiu, naturalmente, o cubo que é ortogonal. A distorção da frase do Cézanne incluindo o cubo, entretanto, fez fortuna. Até uma escola foi criada, o cubismo, que acaba reforçando a idéia de que Cézanne considerava realmente o cubo e por extensão às formas. Outras frases dele me intrigavam. Uma na qual ele diz que “a luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor.”. Comecei a entender o porquê de seu rompimento com os impressionistas. Tem mais, ele dizia que à medida que a cor se harmoniza, mais a forma se precisa. Comecei a estudá-lo mais e intrigou-me uma outra frase dele na qual dizia que somente um cinza reina na natureza. Foi somente em 1986 que compreendi esse cinza o qual denominei de sempiterno. Comecei, então, a pensar em uma teoria das cores que descartava essa que se baseia em um círculo cromático que considera as cores com valores absolutos e as classifica em primária, secundária, etc. Percebi que este cinza é um pós ou pré-fenômeno, causa e efeito dos coloridos. Aliás, como observou Rilke, ele não existe. Eu digo que se manifesta na natureza. Compreendi que Cézanne estava fundando um outro olhar para as cores e que pensava no rompimento do tom, isto é, não o considerando como apenas misturas pigmentares, estas observadas por Duchamp quando denunciou a pintura retiniana. Observando as cores percebi que as pós-imagens alteravam no tempo a tonalidade das respectivas cores. Acabei compreendendo que há a cor abstrata substantiva, que é uma idéia platônica e estática, que subsiste por si só, e a cor concreta adjetiva, que está sempre se rompendo e que sua condição é ser no colorido. Mas Cézanne disse que era um primitivo pelas coisas novas que descobrira. Hoje creio que temos muito que estudá-lo. Ele antecipou muitas descobertas científicas, como a teoria do caos, os fractais e certamente outras geometrias que hão de vir. Uma geometria das cores, talvez. Deve-se aqui acrescentar que o mestre de Aix nunca pensou em pintar quadros que fossem ilustrações de teorias científicas. Vale até citarmos um pensamento de Braque; “A arte sobrevoa, a ciência anda apoiada.”

PILS- José, seu primeiro livro, A cor e o cinza, foi uma produção independente. Como você ver o setor editorial para publicação de livros voltados à arte?

JMDC- Hoje, felizmente no Brasil tem-se publicado muitos livros de arte de boa qualidade com os incentivos fiscais. Mas para o me primeiro livro não consegui esse patrocínio, eu mesmo tive que bancá-lo. Já o que recentemente publiquei sobre o cromatismo cezanneano foi através da Fundação Catarinense de Cultura, o que me permitiu uma edição bem mais acurada.

PILS- O que o leitor encontrará em A cor e o cinza?

JMDC- Tanto esse, como no recém publicado, são livros inconclusos. Espero que anime outros artistas a estudarem uma série de questões que eu ainda estou pensando. Sobretudo o recalque da cor na cultura ocidental que se acentuou muito na contemporaneidade. Felizmente alguns críticos, historiadores da arte e artistas estão revendo essa questão.

PILS- Em 1996 numa enquete realizada pelo Jornal do Brasil entre críticos, colecionadores e artistas, você foi citado entre os 70 artistas brasileiros mais importantes do século XX. Qual a importância desse reconhecimento para o artista José Maria Dias da Cruz?


JMDC- Senti um peso, uma responsabilidade. Te confesso que não me envaideceu muito. Há tanta coisa ainda que estudar! Devo acrescentar que nas décadas de 60, 70 e 80 a crítica foi muito hostil com meu trabalho. Chegaram até escrever em um jornal de grande circulação que “inteiramente fora de propósito, equivocada e sem sentido é a pintura de José Maria Dias da Cruz.” Hoje na minha idade, chegando aos 75 anos em setembro, até penso como Cézanne; “Por que tão tarde, por que tantos sacrifícios?"


PILS- Desde a infância você convive com várias formas de manifestações artísticas:, Artes plásticas, literatura música...Como é crescer e se tornar artista neste país em que à grande maioria é negligenciada uma boa formação cultural? Você acredita que isso é um fator que contribui inversamente para a “proliferação” de bons representantes e frutos das artes e artistas?

JMDC- Creio que devemos pensar como ainda a educação neste nosso país é um problema gravíssimo. Professores mal pagos, projetos educacionais mal formulados. O mesmo acontece na área da cultura. Há ainda esse neo-liberalismo que através da mídia nivela tudo por baixo. Mas felizmente há bons artistas que compreendem bem essa deplorável situação, mesmo que marginalizados.

PILS- Observando um pouco da sua produção (pintura, livros, textos e entrevistas), vejo que há uma constante: Marques Rebelo. Você poderia nos dizer quem foi Marques Rebelo (1907-1973).

JMDC- O fato é que escritores do porte de Graciliano Ramos, Antônio Houaiss, João Cabral de Melo Neto, Millôr Fernandes, e poucos outros o consideravam melhor que Machado de Assis. Há provas. Claro, não somente como pai me influenciou. Tive um professor de pintura, Aldary Toledo, que me disse que se aprende pintura lendo-se poesia até mais do que somente livros teóricos. Além do mais Marques Rebelo foi uma pessoa que na década de 40 muito fez para a difusão das artes plásticas moderna no Brasil. Graças a ele uma primeira grande exposição de artistas modernos brasileiros saiu do Brasil e percorreu alguns países da América do Sul. Dela surgiu o primeiro livro de um crítico estrangeiro, o argentino José Romero Brest, analisando nossa produção artística moderna. Isso em 1945. Também fundou vários museus de arte moderna. O Museu de Santa Catarina foi o primeiro a ser fundado de fato em 1948. O de São Paulo foi criado de direito, uma vez que foi registrado em cartório. De fato só passou a funcionar em 1949.

PILS- José, as obras do seu pai, o Marques Rebelo, estão sendo reeditadas pela editora José Olympio. Gostaria que você esclarecesse por que um escritor do nível dele ficou tanto tempo com os livros sem novas edições? E como está sendo recebida pelos leitores as novas edições dos livros do Rebelo?

JMDC- Por uma fatalidade um advogado psicopata se apropriou dos bens da família logo que meu pai morreu. A família ficou impedida de editá-lo, pois não possuía a documentação necessária. Mas eu sempre, contratando advogados, consegui que algo fosse publicado. Agora a Editora José Olimpio vai editar as obras completas de Marques Rebelo. Assim as novas gerações estão redescobrindo-o. Fiz muito por isso. Digo até mais. Procuro em meus trabalhos recuperar escritores e pintores que estão totalmente esquecidos. É o caso do escritor Cornélio Pena ou o pintor Martinho de Haro, por exemplo.

PILS- Quando se fala em arte, um conjunto variado de produções (música, literatura, as artes plásticas, a dança...). Por mais distintas que sejam, sempre encontramos a intersecção e/ou junção destes elementos em algumas obras. Em seu trabalho, há espaço para esta fusão de elementos? Como?

JMDC- Isso é uma característica da arte contemporânea. Apesar de ser um artista, como costuma-se dizer, pintor de carteirinha, já expus utilizando-me de vídeos, do espaço cibernético, dialogando com obras de outros artistas, etc.

Tem ainda os meus desenhos que denomino assemblages de poesia e pintura. Há questões plásticas que o discurso verbal não dá conta. Segue abaixo um exemplo. Nele procuro mostrar como descartei um círculo cromático absoluto e como compreendo o rompimento do tom. (clique na imagem para ampliar)


PILS- Recentemente você publicou o seu segundo livro. O Cromatismo Cezannano. Gostaria que você falasse sobre ele. Como nasceu este livro?

JMDC- Como disse acima, começo a pintar depois de ter o quadro quase já pronto em minha cabeça. Para isso costumo fazer várias anotações, croquis, etc. Um dia percebi que eram tantas as anotações que resolvi organizá-las. Daí surgiu a idéia de publicá-las, como extensão de minha obra. Surgiram algumas edições do primeiro, A cor e o Cinza. O Cromatismo cezanneano é uma continuação

PILS- Em Cromatismo Cezanneano, você aborda duas questões: o serpenteamento e o cinza sempiterno. Como poderemos entender essas questões?

JMDC- primeiro vou falar sobre o serpenteamento. Desde cedo, adolescente ainda, um livro me fascinava: era o Tratado da Pintura do Leonardo. Aqui abro um parêntesis. Até hoje não compreendo porque esse livro é pouco estudado nas escolas de arte. Noto que é muito mais estudado nas faculdades de filosofia. Enfim... Continuemos. Nele há uma frase que me intrigou. “Devemos observar com muito cuidado os limites de cada corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares.” No princípio não compreendi nada, mas uma coisa me pareceu claro. Leonardo estava pensando muito mais sobre os limites dos corpos como uma questão bem complexa, e não o que se lia nas histórias das artes, ou seja, que ele introduziu o esfumato na pintura. Esfumato é apenas um procedimento. Com as minhas anotações e estudos comecei a compreender que Leonardo, ao contrário de Van Eyck no quadro O casal Arnolfini, não estava interessado em um espaço remoto, mas mostrar como uma burguesia ascendente via o mundo, ou seja, o espaço imediato. Daí ter compreendido o serpenteamento como o resultado que Leonardo encontrou para resolver uma questão de perspectiva biocular e qual era a visão de mundo dessa classe social ascendente na qual o ideal substituiu a fé. Isso me levou a estender o serpenteamento para todo o espaço plástico.

Sobre o cinza sempiterno diria que começou quando procurei entender melhor uma frase de Cézanne na qual ele diz que “somente um cinza reina na natureza, mas alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa.” Claro, não se refere às misturas pigmentares do branco e preto. Comecei, então, a compreender que Cézanne estava nos apontando para a necessidade de revermos as teorias cromáticas baseadas no espectro da luz. Isso me levou e pensar em uma outra teoria cromática. Descartei totalmente o círculo cromático construído a partir das descobertas de Newton. Isso me permitiu compreender um pouco melhor que a cor concreta adjetiva tem uma dimensão temporal.

Vale aqui observar o que Hélio Oiticica afirmou: “Há uma questão importante a ser pensada na pinura (sic): a cor.”

PILS- Você traz em ainda neste livro uma observação sobre o olho. “É na convivência dos olhos com as formas e os coloridos do quadro que o espaço plástico se constrói de uma forma bastante dinâmica. Falando-se assim parece uma coisa muito difícil, mas não é. Depende do saber do olho”. Discorra um pouco sobre o olho e sua importância nas artes plásticas.

JMDC- Podemos começar citando algumas frases. Essa do Leonardo; “O olho é a janela da alma.” Ou essas anotações de Wittgenstein que estão no Tractadus Lógico-philosophicus:

“5,633 Onde no mundo se há de notar um sujeito metafísico?

Tu dizes que aqui se está inteiramente como diante do olho e do campo visual, mas tu não vês realmente o olho. “E não há coisa no campo visual que leve à conclusão de que é vista por um olho.”

Uma outra do poeta Michael Palmer; “As diversas distâncias entre o olho e pálpebra.”

Estão aqui algumas questões que ainda terei muito que pensar. Sobretudo considerando o que Maturana afirmou e que acima citei: “Vemos o que não vemos.”

Ao menos podemos afirmar o quanto os pintores têm ainda que estudar.

PILS- O que motiva e/ou inspira o artista plástico, o escritor e estudioso José Maria Dias da Cruz?

Diria que sem a pintura minha vida perderia totalmente o sentido. É uma questão de sobrevivência e, por conseqüência, ética e estética. Aqui tenho que ressaltar que pintar para mim não é estar com um pincel à mão com uma tela à frente. È, sobretudo, pensar. Procurar uma outra lógica que nos permita entender os vários níveis de realidade e percepção. E mais. Entender o que Cézanne afirmou: “A arte é uma religião.”

Para terminar um outro quadro, este recente: “Observando uma maria-sem-vergonha, ou vários caminhos para o infinito.”


José Maria mantém ainda um blog em que seu trabalho e estudo podem ser conferidos: www.dacornapintura.blogspot.com

8 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Paula: seu blog está de primeira, que entrevista! Ele é filho de Marques Rebelo, eu não sabia.

ErikaH Azzevedo disse...

Que colcha de retalhos vais tecendo por aqui hein Paulinha, com o mais fino bordar da alta cultura.

Um beijo e meu carinho e admiração por este canto.

Erikah

Pedro Luso de Carvalho disse...

Paula,

Excelente essa com José Maria Dias da Cruz, que não o conhecia.

Abraços,
Pedro.

CESAR CRUZ disse...

Sensacional! Adorei! Meu xará, diga-se de passagem.

Paula, votei em vc no concurso. Vamos torcer.

bjo
Cesar

Marcia disse...

Paula, vim te desejar uma feliz semana!
Muita paz,

ju rigoni disse...

Oi, Paulinha!

Entrevista maravilhosa; de tirar o fôlego, tanto nos faz refletir... Não consigo deixar de ver o José, pintor que eu não conhecia, igualmente como um poeta dos melhores, a expor inversos da arte, pensando-os com o empenho do poeta ao escolher palavras, consciente do mar de significados que cada uma pode representar.

Nossa! Aprende-se muito lendo essa entrevista. Uma aula! Parabéns aos dois! Bjs, querida Paula, e inté!

Paula: pesponteando disse...

Gerana, Sim, ele é filho do Rebelo. E obrigada pela visita constante...

erika, agradeço a gentileza das palavras...

Cris, já estou por dentro. Fique à vontade no blog.

Pedro, Cesar,é sempre bom tê-los por aqui...

Marcia, obrigada!

Ju, certamete é a mesma busca, a do poeta e a do pintor.

bjs

Raymundo de Sá disse...

Paula,sou muito amigo do José Maria Dias da Cruz, amigo que perdi contato ha muito tempo, resolvi procurá-lo na internet e o encontrei no teu blog. Poderia me ajudar com esse reencontro? A matéria ficou muito boa, parabéns. Obrigado desde já. Meu
endereço eletronico: raymundosa@hotmail.com