3 de maio de 2012

Baudelaire escreve sobre Edgar Allan Poe


Leia em primeira mão prefácio do poeta Charles Baudelaire ao livro “Contos de Imaginação e Mistério”, de Edgar Allan Poe, que sai no Brasil no final de maio pela Editora Tordesilhas.


PREFÁCIO

Outras anotações sobre Edgar Poe
I
Literatura da decadência! – Palavras sem sentido que frequentemente ou­vimos cair, com o som enfático de um bocejo, da boca daquelas esfinges sem segredo que velam às santas portas da Estética clássica. Toda vez que o oráculo irrefutável ressoa, pode-se afirmar que se trata de uma obra mais interessante que a Ilíada. É o caso, evidentemente, de um poema ou de um romance no qual todas as partes são dispostas habilmente em prol da surpresa, no qual o estilo é ornado magnificamente, no qual todos os re­cursos da linguagem e da prosódia são utilizados por uma mão impecável. Quando ouço ecoar o anátema – que, seja dito de passagem, geralmente cai sobre algum poeta célebre – sou sempre tomado pela vontade de res­ponder: “Acaso vocês me tomam por alguém tão bárbaro quanto vocês, e creem que eu seja capaz de me divertir de forma tão sofrível?” Compara­ções grotescas então se põem em funcionamento no meu cérebro; parece que fui apresentado a duas mulheres: uma matrona grosseira, repugnante do ponto de vista da saúde e da moral, sem postura, em suma, sem dever nada, a não ser à pura natureza; a outra, uma daquelas belezas que domi­nam e oprimem a lembrança, unindo a eloquência de sua elegância ao seu charme profundo e original, senhora de si, consciente e rainha da própria pessoa – uma voz que soa como se um instrumento bem afinado estivesse falando, e olhares que não transmitem senão o que querem. Minha es­colha não poderia ser mais simples; no entanto, há esfinges pedagógicas que me repreenderiam por faltar à honra clássica. Mas, para deixar as parábolas de lado, acredito que posso perguntar a esses homens sábios se eles entendem toda a vaidade, toda a inutilidade de sua sabedoria. Dizer literatura da decadência implica a existência de uma escala de literaturas, uma recém-nascida, outra pueril, uma adolescente, etc. Esse termo, quero dizer, pressupõe algo de fatal e de providencial, como um decreto inevitá­vel; e é extremamente injusto nos criticarem por cumprir a lei misteriosa. Tudo o que consigo entender do discurso acadêmico é ser vergonhoso obedecer a essa lei de bom grado e sermos culpados por nos regozijarmos com nosso destino. Esse sol que, há poucas horas, dominava tudo com luz direta e branca, em breve irá encharcar o horizonte ocidental com várias cores. Nos jogos desse sol agonizante, certos espíritos poéticos encontra­rão novos prazeres; eles descobrirão uma fileira de colunas deslumbrantes, cascatas de metal fundido, galerias de fogo, um esplendor triste, a volúpia da saudade, todos os encantos do sonho, todas as lembranças do ópio. E o pôr do sol lhes parecerá de fato como a maravilhosa alegoria de uma alma carregada de vida que vai para trás do horizonte com uma enorme provisão de pensamentos e sonhos.
Mas o que os professores não pensaram é que, no movimento da vida, tal complicação, tal combinação pode se apresentar completamen­te inesperada por sua sabedoria escolar. Então sua língua minguada se encontra em falta, como no caso – fenômeno que se multiplicará com prováveis variantes – no qual uma nação começa pela decadência e estreia onde as outras terminam.
Que entre as imensas colônias do presente século se façam novas li­teraturas produzirá, sem dúvida alguma, acidentes espirituais de uma na­tureza desconcertante para o espírito da escola. Jovem e velha ao mesmo tempo, a América fala pelos cotovelos e caduca com uma volubilidade espantosa. Quem seria capaz de contar seus poetas? São inumeráveis. Suas bluestockings? Elas enchem os jornais. Seus críticos? Acredite, a América possui pedantes como os nossos para chamar o artista o tempo todo de volta à beleza antiga, para questionar um poeta ou romancista sobre a moralidade do seu objetivo e a qualidade das suas intenções. O que é comum aqui é ainda mais comum lá, literaturas que não sabem sequer a ortografia; uma atividade pueril inútil; um sem-número de compila­dores; gente que se repete o tempo todo; plagiários de plágios e críticos de críticos. Nesse caldeirão de mediocridades, nesse mundo que adora aperfeiçoamentos materiais – escândalo de um gênero novo que permite compreender a grandeza dos povos preguiçosos –, nessa sociedade ávida por assombramento, apaixonada pela vida, mas, sobretudo, por uma vida cheia de excitações, um homem foi grande não apenas por sua sutileza me­tafísica, pela beleza sinistra ou encantadora do que concebeu, pelo rigor de suas análises, mas também foi grande como caricatura. É preciso que eu me explique com alguma inquietação, pois recentemente um crítico imprudente se servia, para denegrir Edgar Poe e contestar a sinceridade da minha admiração, da palavra malabarista, que eu mesmo havia emprega­do quase como um elogio ao nobre poeta.
Do seio de um mundo esfomeado por materialidades, Poe se jogou no sonho. Sufocado como estava pela atmosfera americana, escreveu na dedicatória de Eureka: “Ofereço este livro àqueles que puseram fé no so­nho como única realidade!” Foi, portanto, um protesto admirável, que ele fez à sua maneira, in his own way. O autor que, n’O colóquio de Monos e Una, deixa abundante o desprezo e o desgosto pela democracia, pelo pro­gresso e pela civilização é o mesmo autor que, para capturar a credulidade e satisfazer a curiosidade dos seus, reconheceu com mais vigor a soberania humana e fabricou com mais engenho os factoides mais lisonjeiros ao or­gulho do homem moderno. Hoje, Poe me parece um hilota3 que pretende fazer seu mestre corar. Por fim, afirmando minhas ideias de modo ainda mais claro, Poe foi sempre grande, não apenas pelas concepções nobres, mas também pelas farsas.
II
Pois ele nunca foi ludibriado! Não acredito que o virginiano, que escreveu tranquilamente em plena explosão democrática “O povo não tem relação alguma com as leis, a não ser a obediência”, jamais tenha sido vítima da sa­bedoria moderna; e “O nariz da ralé é a imaginação; é pelo nariz que sem­pre se poderá guiá-la com facilidade” e tantas outras passagens nas quais a zombaria chora, pesada como artilharia, mas, ainda assim, descuidada e altiva. Os swendenborgeanos o felicitam por sua Mesmeric Revelation [Re­volução hipnótica] à semelhança daqueles ingênuos iluminados que ou­trora olhavam o autor de Le diable amoureux [O diabo apaixonado] como revelador de seus mistérios; eles lhe agradecem pelas grandes verdades que acaba de proclamar, pois descobriram (ó, verificador do que não pode ser verificado!) que tudo o que ele anunciou é completamente verdadeiro, mesmo que antes, confessa essa boa gente, eles houvessem suspeitado que pudesse se tratar de mera ficção. Poe responde que, de sua parte, jamais duvidou. Ainda é preciso citar uma pequena passagem que me salta aos olhos enquanto folheio pela centésima vez as incríveis Marginalia, que são como a câmara secreta do seu espírito: “A enorme multiplicação de livros de todos os ramos do conhecimento é uma das maiores calamidades desta época, pois é um dos obstáculos mais sérios à aquisição de qualquer co­nhecimento preciso”. Aristocrata por natureza mais que por nascimento, o virginiano, o homem do sul, o Byron perdido em um mundo ruim sempre manteve sua impassibilidade filosófica, e, seja definindo o nariz da ralé, zombando dos fabricantes de religiões ou desprezando as bibliotecas, resta aquele que foi e será sempre o verdadeiro poeta – uma verdade vestida de forma bizarra, um paradoxo aparente, alguém que não quer ser acotovela­do em meio à multidão e que corre ao Extremo Oriente quando os fogos de artifício vão rumo ao poente.
Mas eis o ponto mais importante: notaremos que esse autor, produto de um século orgulhoso de si mesmo, filho de uma nação mais orgulho­sa de si mesma que qualquer outra, viu com clareza e afirmou impassi­velmente a perversidade do homem. Há no homem, diz ele, uma força misteriosa que a filosofia moderna é incapaz de perceber; e, no entanto, sem essa força inominada, sem essa tendência primordial, várias ações hu­manas permanecerão inexplicadas, inexplicáveis. Essas ações não atraem senão porque são más, perigosas; elas têm a atração do redemoinho. Tal força primitiva, irresistível, é a Perversidade natural que faz com que o homem seja o tempo todo e ao mesmo tempo homicida e suicida, crimi­noso e carrasco; pois, ele acrescenta com sutileza notavelmente satânica, a impossibilidade de encontrar um motivo razoável para certas ações más e perigosas poderia nos levar a considerá-las como sugestão do Demônio se a experiência e a história não nos ensinassem que Deus costuma desestabi­lizar a ordem e negligenciar o castigo aos faltosos; após ter se valido dos mes­mos faltosos como cúmplices, tal é a palavra que passa, confesso, pelo meu espírito, como subentendido tão pérfido quanto inevitável. No entanto, não quero, no presente instante, cuidar de nada a não ser da verdade es­quecida, a perversidade primordial do homem, e não é sem satisfação que vejo alguns destroços da antiga sabedoria voltarem de um país de onde não os esperaríamos. É agradável que algumas explosões da boa e velha verdade sejam jogadas dessa maneira na cara de todos os que louvam a raça humana, de todos esses apaziguadores e atenuadores que repetem em todos os tons possíveis “Nasci bom, você também, todos nós nascemos bons!” esquecendo, não!, fingindo esquecer o outro lado, que nascemos marcados pelo mal!
Por qual mentira ele poderia ser ludibriado, aquele que às vezes – do­lorosa necessidade dos meios – as talhava tão bem? Que desprezo pela filo­sofaria, em seus melhores dias, quando ele era, por assim dizer, iluminado! Esse poeta, de quem várias ficções parecem feitas por simples gosto, para confirmar a pretensa onipotência do homem, quis purgar algumas vezes a si mesmo. O dia em que escreveu “Toda certeza está nos sonhos” foi quan­do repeliu seu próprio americanismo para a região das coisas inferiores; outras vezes, retomando o verdadeiro caminho dos poetas, obedecendo sem dúvida à inelutável verdade que nos assombra como um demônio, ele soltava os ardentes suspiros do anjo caído que se lembra dos Céus; mandava sua angústia à idade de ouro e ao Éden perdido; chorava toda essa magni­ficência da natureza, contorcendo-se diante do bafo quente dos fornos; enfim, lançava essas páginas admiráveis: O colóquio de Monos e Una, que teriam encantado e perturbado o impecável De Maistre.
Foi ele quem disse sobre o socialismo, na época em que isso sequer ti­nha um nome, ou quando esse nome ainda não tinha sido vulgarizado: “O mundo está infestado atualmente por uma nova seita de filósofos, que não se reconhecem como seita e, consequentemente, não adotaram um nome. São os crentes em toda velharia (ou seja: pregadores do velho). O grande padre deste lado do Atlântico é Charles Fourier, e, do outro lado, Horace Greely. O único traço comum entre os membros da seita é a credulidade – chamemos a isso de demência e não falemos mais. Pergunte a um deles por que acredita nisso ou naquilo e, se ele for consciencioso (os ignoran­tes geralmente são), lhe dará uma resposta análoga à que deu Talleyrand4 quando lhe perguntaram por que ele acreditava na Bíblia. ‘Acredito’, ele disse, ‘primeiro porque sou bispo de Autun e em segundo lugar porque não entendo absolutamente nada.’ O que esses filósofos chamam de argumento é para eles uma maneira de negar o que é e de explicar o que não é.”
O progresso, essa grande heresia da decrepitude, não podia lhe esca­par. O leitor verá, em diferentes passagens, os termos usados para caracteri­zá-lo. De fato, poderia ser dito, ao ver o ardor empregado, que ele se vingava como que de uma vergonha pública, de uma ofensa da rua. Como ele deve ter rido, daquele riso desdenhoso dos poetas, que não engrossa jamais o coro dos curiosos, se deu de encontro, como me ocorreu recentemente, com aquela frase maravilhosa que faz os bufões e os voluntários sonharem absur­dos dignos de palhaços e que vi se exibir em um jornal mais que sério: O progresso incessante da ciência permitiu, pouco tempo atrás, que se encontrasse o segredo perdido e há muito tempo buscado de… (fogo grego, têmpera de cobre, qualquer coisa perdida), do qual as aplicações mais bem-sucedidas remontam a uma época bárbara e muito antiga!!! Eis uma frase que pode se chamar de um verdadeiro achado, de uma sonora descoberta, mesmo em um século de progresso incessante; mas acredito que a múmia Allemistakeo não deixaria de perguntar, com o tom doce e discreto da superioridade, se foi também graças ao progresso incessante – à lei fatal, irresistível, do progresso – que esse famoso segredo foi perdido. Assim que, para manter o tom de farsa, em um assunto que contém tanto de riso quanto de lágrimas, não é estupendo ver uma nação, várias nações, em breve toda a humanidade, dizer a seus sábios, a seus feiticeiros “Eu os adorarei e os farei grandes se vocês me persuadi­rem de que progredimos sem querer, inevitavelmente, enquanto dormimos; livrem-nos da responsabilidade, encubram para nós a humilhação das com­parações, sofistiquem a história e poderão se chamar de sábios dos sábios”? Não é matéria para espanto que essa ideia tão simples não estoure em todos os cérebros: que o progresso (enquanto haja progresso) aperfeiçoe a dor na mesma medida em que refina a volúpia, e que, se a epiderme dos povos se torna mais delicada, eles não buscam nada além de uma Italiam fugientem5, uma conquista perdida a cada minuto, um progresso que nega a si mesmo o tempo todo.
Mas essas ilusões, a princípio interessantes, têm origem em um fundo de perversidade e de mentira, atraem as almas apaixonadas pelo fogo eter­no, como Edgar Poe, e exasperam as inteligências obscuras, como Jean­-Jacques6, em quem uma sensibilidade ferida e propensa à revolta toma o lugar da filosofia. Que esse homem tenha razão contra o animal depravado é incontestável; mas o animal depravado tem o direito de criticá-lo por invocar a natureza. A natureza não cria nada além de monstros, e toda a questão se expõe na palavra selvagem.
Nenhum filósofo ousará propor como modelo aquelas hordas po­dres, infelizes, vítimas dos elementos, pasto de bestas, tão incapazes de fabricar armas quanto de conceber a ideia de um poder espiritual e supre­mo. Mas, se quisermos comparar o homem moderno, o homem civiliza­do, ao homem selvagem, ou, mais além, uma nação dita civilizada a uma nação dita selvagem, ou seja, privada de todas as engenhosas invenções que dispensam o indivíduo de heroísmo, quem não percebe que todas as honrarias vão para os selvagens? Por sua natureza, pela própria necessi­dade, eles são enciclopédicos, enquanto o homem moderno se encontra confinado nas minúsculas regiões da especialidade. O homem civilizado inventa a filosofia do progresso para se consolar de sua abdicação e deca­dência; enquanto o homem selvagem, marido temido e respeitado, guer­reiro forçado à bravura individual, poeta às horas melancólicas quando o pôr do sol o convida a cantar o passado e os ancestrais, corta de mais perto a fronteira do ideal. Por qual lacuna nós ousaríamos repreendê-lo? Ele tem seu padre, seu feiticeiro e seu médico. O que eu estou dizendo? Ele tem o dândi, encarnação suprema do belo transportado à vida material, aquele que dita a forma e governa os costumes. Suas roupas, seus enfeites e seu cachimbo testemunham uma faculdade inventiva da qual desertamos há muito tempo. Podemos comparar nossos olhos preguiçosos e nossos ouvi­dos ensurdecidos àqueles olhos que perscrutam a névoa e àqueles ouvidos que ouviriam a grama crescer? E a selvageria, a alma simples e infantil, ani­mal obediente e carinhoso que se doa inteiro e sabe que não é senão meta­de de um destino, nós a decretaremos inferior à senhora americana a qual o sr. Bellegarrigue (redator do Moniteur de l´épicerie [Monitor da merce­aria]!) acreditou elogiar ao dizer que era o ideal da mulher bem cuidada? Essa mesma mulher, cuja moral bastante positiva inspirou Edgar Poe (tão galante, tão respeitoso à beleza!) as tristes linhas seguintes: “Essas bolsas enormes, que parecem um pepino gigante e estão na moda entre nossas belas, não são, como se acredita, de origem parisiense; são perfeitamente indígenas. Por que uma moda assim surgiria em Paris, onde uma mulher não carrega nada na bolsa além de dinheiro? Mas a bolsa de uma america­na! É preciso que essa bolsa seja vasta o suficiente para que ela possa fechar ali todo seu dinheiro – e toda sua alma!” Quanto à religião, não falarei de Vitziliputzli7 com a mesma delicadeza de Alfred de Musset; confesso, sem vergonha, uma preferência muito maior pelo culto de Teutates8 ao de Ma­mon9, e o padre que oferece ao cruel chantagista hóstias humanas de víti­mas que morrem honrosamente, de vítimas que querem morrer, me parece um ser inteiramente doce e humano em comparação ao financista que não imola o povo a não ser em interesse próprio. De tempos em tempos, essas coisas ainda são vislumbradas, e encontrei uma vez em um artigo do sr. Barbey d’Aurevilly uma exclamação de tristeza filosófica que resume tudo o que eu gostaria de dizer sobre esse assunto: “Povos civilizados, que não param de lançar pedras aos selvagens, em breve vocês não merecerão ser nem mesmo idólatras!”
Um ambiente como esse – já disse, mas não posso resistir à vontade de repetir – não é feito pelos poetas. O que um espírito francês, suponha o mais democrático, entende por um Estado, não encontraria lugar em um espírito americano. Para toda a inteligência do velho mundo, um estado político tem um centro de movimento que é seu cérebro e seu sol, memó­rias antigas e gloriosas, longos anais poéticos e militares, uma aristocracia, à qual a pobreza, filha das revoluções, não faz senão acrescentar um lustre paradoxal; mas, isso! essa multidão de vendedores e consumidores, esse inominável, esse monstro sem cabeça, essa degradação do outro lado do oceano, Estado! – estou de acordo que um cabaret cheio da balbúrdia das más intenções e de clientes que tratam de negócios nas mesas sujas possa ser assimilado a um salon, ao que nós chamaríamos salon outrora, repúbli­ca do espírito presidida pela beleza!
Será sempre difícil exercer, de forma ao mesmo tempo nobre e frutífe­ra, a condição de homem de letras sem se expor à difamação, à calúnia dos impotentes, à inveja dos ricos – inveja que é o castigo deles! – às vinganças da mediocridade burguesa. Mas isso, difícil em uma monarquia moderada ou em uma república regular, torna-se quase impraticável em uma espécie de cafarnaum onde cada sargento faz a polícia conforme seus vícios (ou suas virtudes, é a mesma coisa); onde um poeta ou um romancista de um país de escravos é detestável aos olhos de um crítico abolicionista; onde é impossível saber qual é o maior escândalo – o desleixo do cinismo ou a imperturbabilidade da hipocrisia bíblica. Queimar os negros acorren­tados, culpados por sentir seu semblante preto fervilhar com o vermelho da honra, disparar um revólver contra a plateia do teatro, estabelecer a poligamia no paraíso do Oeste, que os selvagens (esse termo soa como uma injustiça) ainda não haviam sujado com essas vergonhosas utopias, colar nos muros, sem dúvida para consagrar o princípio da liberdade ili­mitada, a cura para as doenças de nove meses, são alguns dos traços salientes, algumas das ilustrações morais do nobre país de Franklin, o inventor da moral de balcão, o herói de um século dedicado à matéria. É bom chamar atenção constantemente para tais maravilhas de brutalidade em um tempo em que a mania pela América se tornou quase uma paixão de bom tom, a ponto de um arcebispo poder nos prometer, sem rir, que a Providência nos chamaria logo a gozar desse ideal transatlântico.
III
Um meio social desse feitio engendra necessariamente erros literários equivalentes. É contra esses erros que Poe reagiu sempre que pôde e com toda a força. Portanto, não deve nos espantar que os escritores americanos, reconhecendo seu poder singular como poeta e contista, tenham sempre tentado invalidar seu valor como crítico. Em um país no qual a ideia de utilidade, a mais hostil do mundo à ideia de beleza, controla tudo, o crítico perfeito será o mais honrado - em outras palavras, aquele cujas tendências e cujos desejos se aproximem mais das tendências e dos desejos do público, aquele que embaralha as faculdades e os gêneros de produção e atribui a todos uma meta comum – se procurar, em um livro de poesia, meios para aperfeiçoar a consciência. Naturalmente, o indivíduo se torna cada vez menos preocupado com as belezas reais, positivas, da poesia; assim como ficará cada vez menos chocado com as imperfeições e mesmo com as fa­lhas da execução. Edgar Poe, ao contrário, dividindo o mundo do espírito em intelecto puro, gosto e sentido moral, aplicava a crítica de acordo com es­sas três categorias. Ele era, sobretudo, sensível à perfeição da estrutura e à correção da execução; desmontando obras literárias como se fossem peças mecânicas defeituosas (em relação à meta que visam alcançar), apontando cuidadosamente os vícios de fabricação; e, quando passava ao detalhe da obra, à sua expressão plástica, ao estilo, em uma palavra, descascava, sem omissão, as falhas de prosódia, os erros gramaticais e toda essa massa de dejetos, que, entre os escritores que não são artistas, maculam as melhores intenções e deformam as concepções mais nobres.
Para ele, a imaginação é a rainha das faculdades; no entanto, por essa palavra entende-se algo maior do que aquilo que a maioria dos lei­tores percebe. Imaginação não é a fantasia; não é a sensibilidade, mesmo que seja difícil conceber um homem imaginativo que não seja sensível. A imaginação é uma faculdade quase divina que percebe tudo com antece­dência, à parte dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas das coisas, as correspondências e as analogias. As honrarias e funções que ele confere a essa faculdade carregam um valor tal (ao menos quando se com­preende bem o pensamento do autor), que um sábio sem imaginação não parece mais que um falso sábio ou, quando muito, um sábio incompleto.
Entre os domínios literários onde a imaginação pode obter os resulta­dos mais curiosos, pode colher tesouros, não os mais ricos e preciosos (esses pertencem à poesia), mas os mais numerosos e variados, está um particular­mente querido a Poe, o conto. Ele tem sobre o romance de grandes propor­ções a imensa vantagem que a brevidade acrescenta à intensidade do efeito. Tal leitura, que pode ser realizada de um único fôlego, deixa no espírito uma marca muito mais poderosa que uma leitura intermitente, muitas ve­zes interrompida por problemas de negócios e preocupações com interesses mundanos. A unidade da impressão, a totalidade do efeito é uma vantagem imensa que pode dar a esse gênero de composição uma superioridade muito especial, no sentido de que um conto muito curto (o que é, sem dúvida, um defeito) seja ainda melhor que um conto muito extenso. O artista, se é hábil, não acomodará seus pensamentos aos incidentes; mas, tendo conce­bido deliberadamente, a seu bel-prazer, um efeito a produzir, inventará os incidentes, arranjará os eventos mais apropriados para conduzir ao efeito desejado. Se a primeira frase não for escrita de forma a preparar a impressão final, a obra é deficiente desde o começo. Ao longo da composição não se deve soltar uma única palavra que não seja uma intenção, que não tenda, direta ou indiretamente, a percorrer o plano traçado.
Há um ponto no qual o conto é superior até mesmo ao poema. O ritmo é necessário ao desenvolvimento da ideia de beleza, que é o maior e mais nobre objetivo do poema. Ora, os artifícios do ritmo são um obstá­culo insuperável ao desenvolvimento minucioso de pensamentos e expres­sões que tenham por objetivo a verdade. Pois a verdade pode muitas vezes ser a meta do conto, e o raciocínio a melhor ferramenta para a construção de um conto perfeito. Eis a razão pela qual esse gênero de composição, que não é tratado com tanta elevação quanto a poesia pura, pode fornecer produtos mais variados e mais acessíveis ao gosto do leitor comum. Além disso, o contista tem à sua disposição uma enorme quantidade de tons, de nuances de linguagem – o tom reflexivo, o sarcástico, o humorístico, que repudia a poesia – e que são como dissonâncias, ultrajes à ideia de beleza pura. E é pelo mesmo motivo que o escritor que busca uma única meta de beleza em um conto trabalha em grande desvantagem, sendo privado do instrumento mais útil, o ritmo. Sei que, em todas as literaturas, foram fei­tos esforços, muitas vezes felizes, para criar contos puramente poéticos; o próprio Edgar Poe fez alguns muito bonitos. Mas são lutas e esforços que servem apenas para demonstrar a força dos verdadeiros recursos adapta­dos às metas correspondentes; não seria arriscado afirmar que para alguns autores, os maiores nos quais podemos pensar, essas tentações heroicas viessem de um desespero.
IV
“Genus irritabile vatum!10 Que os poetas (vamos utilizar a palavra em seu sentido mais extenso, compreendendo todos os artistas) sejam uma raça irritável é bem sabido; mas o porquê não me parece tão claro. O artista não é artista senão por sua compreensão refinada do belo, o que lhe proporcio­na deleites inebriantes, mas, ao mesmo tempo, implica uma compreensão igualmente refinada de toda deformidade e desproporção. Portanto, um erro, uma injustiça contra um poeta o exaspera de tal maneira que pode parecer, ao julgamento comum, em completa disparidade em relação à injustiça cometida. Os poetas nunca veem injustiça onde não existe, mas, na maioria das vezes, onde os olhos não poéticos são incapazes de vê-la. Dessa forma, a irritabilidade poética não tem relação com o temperamen­to, entendido em sua acepção vulgar, mas com uma clarividência além do normal relativa à falsidade e à injustiça. Tal clarividência nada mais é que um corolário da percepção viva do real e da justiça, da proporção, para empregar uma palavra relacionada ao belo. Mas há uma coisa muito clara, o homem que não é (ao julgamento comum) irritabilis não é, de forma alguma, poeta.”
São palavras do próprio poeta, em uma apologia excelente e irrefu­tável a toda sua raça. Poe levava essa sensibilidade aos assuntos literários, e a extrema importância que conferia à poesia o induzia muitas vezes a um tom, segundo o julgamento dos mais frágeis, de superioridade. Já observei, acredito, que muito dos preconceitos que ele precisava com­bater, ideias falsas, julgamentos vulgares que circulavam a seu respeito, infectaram a imprensa francesa há um bom tempo. Não será inútil, por­tanto, observar sumariamente algumas de suas opiniões mais importan­tes em relação à composição poética. O paralelismo com o erro tornará a aplicação bastante fácil.
Mas, antes de tudo, devo dizer que, ao destacar o poeta natural, inato, Poe também destacava a ciência, o trabalho e a análise, o que parecerá exorbitante aos orgulhos não eruditos. Ele não apenas dis­pensou esforços consideráveis para submeter à sua vontade o demônio fugitivo dos minutos felizes, para lembrar a seu gosto essas sensações refinadas, essas ânsias espirituais, esses estados de saúde poética, tão raros e preciosos que poderiam ser considerados graças exteriores ao homem, como aparições; mas ele também submeteu a inspiração ao método, à análise mais severa. A escolha dos meios! Ele insiste o tempo todo em uma eloquência consciente da apropriação do meio ao efei­to, do uso da rima, da lapidação do refrão, da adaptação da rima ao sentimento. Ele afirmava que quem não sabe tocar o intangível não é poeta; que só é poeta quem é mestre da memória, soberano das pala­vras, estando o registro de seus próprios sentimentos sempre prontos a se deixar folhear. Tudo pelo desenlace! ele repete incansavelmente. Até o soneto tem necessidade de um plano, e a construção, a armação, por assim dizer, é a garantia mais importante da vida misteriosa das obras do espírito.
Recorro naturalmente ao ensaio intitulado The Poetic Principle [O princípio poético] e nele encontro, desde o começo, um protesto vigo­roso contra o que se pode chamar, em matéria de poesia, de heresia do comprimento ou da dimensão – o valor absurdo atribuído aos poemas longos. “Um poema longo não existe; o que se entende por poema longo é uma perfeita contradição em termos.” De fato, um poema não merece esse nome a não ser quando estimula, eleva a alma, e o valor positivo de um poema se dá em função de tal estímulo da alma. Mas, por necessidade psicológica, todos os estímulos são fugitivos e transitórios. Esse estado singular no qual a alma do leitor foi, digamos, pega à força, certamente não durará mais que a leitura do poema, que ultrapassa a tenacidade do entusiasmo da qual a natureza humana é capaz.
Eis o poema épico evidentemente condenado. Pois uma obra de certa dimensão não pode ser considerada poética a não ser que se sa­crifique a condição vital de toda obra de arte, a Unidade; não falo da unidade da concepção, mas da unidade da impressão, da totalidade do efeito, como já disse quando coparei o romance ao conto. O poema épico, portanto, se apresenta, esteticamente falando, como um para­doxo. É possível que as eras antigas tenham produzido séries de poe­mas líricos, reunidos posteriormente pelos compiladores como poemas épicos; mas toda intenção épica resulta evidentemente de uma acepção imperfeita da arte. O tempo dessa anomalia artística passou, e é difícil acreditar que um poema extenso tenha sido popular um dia.
É preciso acrescentar que um poema muito curto, aquele que não fornece um pabulum suficiente ao estímulo criado, que não satisfaz o apetite natural do leitor, também é defeituoso. Não importa a intensi­dade e o brilho do efeito, ele não dura; a memória não o retém; é como um selo que, colocado com pressa, não teve tempo de impor sua imagem à cera.
No entanto, há outra heresia, que, graças ao fingimento, ao peso e à baixeza dos espíritos, é muito mais temível e apresenta maiores possibilidades de duração, um erro que tem vida mais resistente, falo da heresia do ensino, a qual compreende como corolários inevitáveis as heresias da paixão, da verdade e da moral. Uma multidão imagina que o objetivo da poesia seja um ensino qualquer, que ela deva ora fortalecer a consciência, ora aperfeiçoar a moral, ora, por fim, demonstrar seja lá o que for de útil. Edgar Poe diz que os americanos apadrinharam essa ideia heterodoxa; helas! Não é preciso ir a Boston para encontrar a heresia em questão. Aqui mesmo ela nos sitia e ataca cotidianamente a verdadeira poesia. A poesia, por mais que se queira descer a si mesmo, interrogar a própria alma, evocar as lembranças do entusiasmo, não tem outro objetivo a não ser ela mesma; não pode ter outro, e nenhum poema será tão grande, tão nobre, tão digno do nome de poema quan­to aquele que houver sido escrito unicamente pelo prazer de escrever um poema.
Não digo que a poesia não enobreça a moral, entenda bem, que seu resultado final não seja colocar o homem acima dos interesses vul­gares; isso seria, sem dúvida, um absurdo. Digo que, se o poeta buscou uma meta moral, diminuiu sua força poética. E não será imprudente apostar que sua obra será ruim. A poesia não pode, sob pena de desfa­lecimento ou morte, assemelhar-se à ciência ou à moral; ela não tem a verdade por objeto, tem a si mesma. Os modos de demonstração da verdade são outros e estão em outros lugares. A verdade não tem nada a ver com canções. Tudo o que faz o encanto, a graça, o irresistível de uma canção privaria a verdade de autoridade e poder. Frio, calma, im­passibilidade, o humor demonstrativo repele os diamantes e as flores da Musa; eis, portanto, o perfeito oposto do humor poético.
O intelecto visa à verdade, o gosto nos mostra a beleza e o sentido moral nos ensina o dever. É verdade que o meio está intimamente co­nectado aos dois extremos e não se separa do sentido moral a não ser por uma ligeira diferença, que Aristóteles não hesitou em dispor entre algumas das virtudes de seus delicados esquemas. Assim, o que exaspera no espetáculo do vício, sobretudo ao homem de gosto, é a deformidade, a desproporção. O vício agride o justo e o verdadeiro, revolta o intelecto e a consciência; mas, como ofensa à harmonia, como dissonância, ele atinge mais de perto certos espíritos poéticos; e não creio ser escandaloso considerar toda infração moral, à beleza moral, como uma espécie de falha universal de ritmo e de prosódia.
É esse instinto admirável, imortal, do belo que nos faz considerar a terra e os espetáculos como um vislumbre, como uma correspondência do Céu. A sede insaciável por tudo que está do outro lado, e que revela a vida, é a prova mais viva da nossa imortalidade. É ao mesmo tempo para a poesia e através da poesia, para a música e através dela que a alma entrevê os esplendores situados além-túmulo; e, quando um poema sublime traz lágrimas aos olhos, essas lágrimas não são prova de um excesso de deleite, são muito mais o testemunho de uma melancolia irritada, de uma súplica dos nervos, de uma natureza exilada na imperfeição e que gostaria de ga­nhar imediatamente, nessa mesma terra, o paraíso revelado.
Assim, o princípio da poesia é estrita e simplesmente a aspiração hu­mana a uma beleza superior, e a manifestação de tal princípio está em um entusiasmo, um estímulo da alma – entusiasmo completamente indepen­dente da paixão, que é a embriaguez do coração; e da verdade, o pasto da razão. Pois a paixão é natural, natural demais para não introduzir um tom ofensivo, discorde no domínio da beleza pura, familiar e violenta demais para não escandalizar os desejos puros, as melancolias graciosas e os deses­peros nobres que habitam as regiões sobrenaturais da poesia.
Essa elevação extraordinária, essa delicadeza refinada, esse tom de imortalidade que Edgar Poe exige da Musa, ao invés de deixá-lo menos atento às práticas de execução, forçou-o a afiar cada vez mais sua genia­lidade técnica. Muitas pessoas, sobretudo as que leram o singular poema intitulado O corvo, ficariam escandalizadas se eu analisasse o ensaio no qual nosso poeta explica em detalhes (ingenuamente em aparência, mas com uma leve impertinência que não posso repreender) a construção empregada por ele, a adaptação do ritmo, a escolha de um refrão – o mais breve possível e o mais suscetível a variadas aplicações, e, ao mesmo tempo, o mais representativo da melancolia e do desespero, ornado da rima mais sonora (never more, nunca mais) –, a escolha de um pássaro capaz de imitar a voz humana, mas, ainda assim, um pássaro – o corvo – marcado na imaginação popular por uma imagem funesta e fatal – a escolha do tom mais poético de todos, o melancólico –, do sentimento mais poético, o amor por uma morta, etc. “Não colocarei”, diz ele “o herói do meu poema em um ambiente pobre porque a pobreza é trivial e contrária à ideia de beleza. Sua melancolia terá por guarida um quarto mobilhado magnífica e poeticamente.” O leitor surpreenderá em vários contos de Poe sintomas curiosos desse gosto desmedido pelas formas be­las, sobretudo pelas formas belas e singulares, pelos ambientes ornados e pelas suntuosidades orientais.
Eu disse que esse ensaio me parecia marcado por uma leve im­pertinência. Os partidários da inspiração quando muito não deixaram de ver nisso uma blasfêmia e uma profanação; mas creio que o texto tenha sido escrito especialmente para eles. Assim como certos escri­tores afetam o abandono, visando a obra-prima de olhos fechados, cheios de confiança na desordem, esperando que as letras lançadas ao teto caiam ao chão em forma de poema, Edgar Poe – um dos homens mais inspirados que já conheci – se vale da afetação para esconder a espontaneidade, para simular sangue-frio e deliberação. “Acredito po­der me exaltar,” diz ele com um orgulho divertido que não considero mau gosto, “por nenhum ponto da minha composição ter sido deixado à sorte e porque a obra toda caminhou passo a passo rumo à sua meta com a precisão e a lógica rigorosa de um problema matemático.” Ape­nas os amantes da sorte, os fatalistas da inspiração e os fanáticos do verso branco poderiam achar bizarra sua minúcia. Não existe minúcia em matéria de arte.
Quanto aos versos brancos, acrescentarei que Poe dá extrema impor­tância à rima, e sua análise sobre o prazer matemático e musical que o es­pírito tira da rima trouxe tanto cuidado e sutileza que tudo se relaciona ao fazer poético. Ao mesmo tempo que mostra que o refrão é suscetível de apli­cações infinitamente variáveis, ele também buscou rejuvenescer, redobrar o prazer da rima ao acrescentar esse elemento inesperado, a estranheza, que é como o condimento indispensável a toda beleza. O poeta faz, sobretudo, um uso feliz de repetições do mesmo verso ou de vários, frases obstinadas que simulam as obsessões da melancolia ou da ideia fixa – do refrão puro e simples, mas conduzido de várias formas diferentes –, do refrão-variante que interpreta a indolência e a distração – das rimas duplas e triplas, assim como de um gênero de rima que ele introduz na poesia moderna, mas com mais precisão e intenção, as surpresas do verso leonino.
É evidente que o valor de todos esses meios não pode ser verificado senão ao colocá-los em prática; e uma tradução de poesia, tão desejada e concentrada, pode ser um sonho doce, mas não mais que um sonho. Poe fez pouca poesia; algumas vezes chegou a expressar pena por não poder se dedicar não com mais frequência, mas exclusivamente, a esse gênero de trabalho que considerava como o mais nobre. Mas sua poesia tem um efeito poderoso. Não é a efusão ardente de Byron, nem a melancolia harmoniosa de Tennyson, pela qual ele nutria, diga-se de passagem, uma admiração quase fraterna. É algo profundo e resplan­decente como um sonho, misterioso e perfeito como cristal. Não é ne­cessário, acredito, dizer que os críticos americanos costumam denegrir essa poesia; recentemente, encontrei em um dicionário de biografias americanas um artigo no qual ela era descrita como estranheza, temia­-se que essa Musa em trajes de sábio não fizesse escola no glorioso país da moral útil, e, por fim, lamentava-se que Poe não houvesse aplicado seu talento à expressão de verdades morais em vez de desperdiçá-lo na busca de um ideal bizarro e de espalhar por seus versos uma volúpia misteriosa, é verdade, mas sensual.
Conhecemos essa esgrima leal. As repreensões que os maus críticos fazem aos bons poetas são as mesmas em qualquer país. Ao ler esse ensaio, tive a impressão de estar lendo a tradução de um desses numerosos dis­cursos de acusação dirigidos pelos críticos parisienses contra os mais apai­xonados pela perfeição dentre nós, poetas. Nossos favoritos são fáceis de adivinhar, e toda alma tomada pela poesia pura me compreenderá quando eu disser que, entre nossa raça antipoética, Victor Hugo seria menos ad­mirado se fosse perfeito, e que ele não pôde redimir seu gênio lírico a não ser introduzindo à força, brutalmente, em sua poesia o que Edgar Poe considera a heresia capital moderna – o ensino.

Charles Baudelaire
Tradução: Daniel Abrão

Fonte: Revista Cult

3 comentários:

Casal 20 disse...

Uau! Que chique! Paula, este teu post é um presente aos teus leitores! Obrigado por compartilhar.

Abraços sempre afetuosos.

Fábio.

Giovanna disse...

Obrigada Paula, por nos presentear com esse belo texto.
Amei!
Abraços
Giovanna

Anônimo disse...

obrigado pelo texto. longo, mas da pra ler. joia seu espaço paula. parabens. lamarque