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Vivendo a relatividade: noções de uma vida
*Paula Ivony Laranjeira*
Não nasci aleijada, deficiente, eficiente, especial, cadeirante ou qualquer outra coisa. Nasci menina sonhadora. Cresci sertaneja “arretada”. E atualmente sou/vivo utopias concretas. Muitas vezes, me disseram que eu não poderia fazer certas coisas. Descobri que muitas pessoas não podem fazer certas coisas. Eu fiz faculdade, mas tenho amigos que não puderam fazer. Eu subi no Cristo Redentor, mas muitos não podem ir até lá. Eu fui à praia. Mas muita gente não pode ir. Não posso andar com meus pés. Muitos podem. Não posso jogar futebol. Mas muitos jogam. Não posso participar da corrida de São Silvestre. Mas milhares podem. Descobri que não poder fazer algo é relativo.
Quando pequena era uma princesinha que uma raposa malvada tentou matar aos onze meses de vida, mas o príncipe-irmão a matou a golpes de machado. Aos três anos comecei frequentar hospitais. Um calvário para quem não se via diferente dos outros, muito menos “doente”. Só percebi minhas limitações aos treze anos quando estava diante dos meus olhos uma cadeira de rodas. Então conheci um mundo cinzento. Eu era marciano em meu planeta. Quando eu saia à rua as pessoas corriam para me ver. Era estranho ser alvo da curiosidade alheia. Isto, inconscientemente foi limitando meus passeios e minha vontade de ir a locais públicos na cadeira de roda. Ouvi dos médicos que para mim não havia “jeito” Mas sempre dei meu jeito, e vou driblando os “nãos”.
Paralelo a tudo isso, a escola, meu mundo perfeito de sempre, me permitia outra vida. Comecei estudar com oito anos porque minha mãe tinha medo que eu me machucasse. Ela converteu seu amor em força e me levava em seus braços por uma longa distância até a escola. Quando não mais conseguiu me levar em seu colo, adaptou um carrinho de bebê para me levar. Ao sair da alfabetização mudei de escola. Neste novo espaço me senti mais amada. Eu não disputava espaço com colegas que me olhava com desdém, na Escola John Kennedy todos tinham seu espaço e eu vários amigos. Apenas a velha bicicleta que minha mãe comprou, que por sinal quebrava quase todos os dias, me deixava com lágrimas nos olhos pela possibilidade de não ir á escola. Quando fui para a 5ª série, novo colégio. Mas continuei me sentindo
Pelo fato do meu irmão já casado ter voltado a estudar a noite, mudei de turno para ele me levar. Mas não me adaptei e parei de estudar. Parei de viver. Parei de sair. No entanto, uma amiga me trazia o mundo através das noticias da cidade, das histórias que contava. Outras vezes, ela me pegava nas costas e saia comigo para passear nas proximidades de casa, para ir a um parque ou circo que eventualmente vinham à cidade. Ela era meu tudo. Éramos inseparáveis. Tinha dias que passávamos vinte e quatro horas juntas. Ela me levava para sua casa e lá eu dormia. Tínhamos a mesma idade e ela queria que eu vivesse. Lembro-me que certa vez em meu aniversário, ela quebrou ovos em minha cabeça, jogou trigo, a maior bagunça. Minha mãe a fez me dar banho. Mas isso não lhe foi nenhum sacrifício.
E a vida vai dando voltas. Numa dessas voltas mudei de casa. Mudei de vida. Mudei minha vida. Conheci novas pessoas. Comecei a freqüentar a igreja e grupos de oração, e com uma auto-estima lá em cima, voltei a estudar. Se a felicidade pudesse ser expressa em cores, certamente eu seria um arco-íris ambulante. Me sentia amada por Deus, por minha família, por meus amigos e colegas e especialmente, por mim. Passei a entender que poderia ser feliz sem andar, que poderia dar passos de outra forma. Mesmo que fosse “passos-marcas” de pneu.
Hoje eu sei que a chave de tudo é se aceitar. Quando passei a me amar do jeito que eu era/sou, todos ao meu redor também fizeram isso: olharam-me sem preconceitos e com respeito. Assim, as pessoas deixaram de me olhar com pena. Deixei de ser a “coitada” para ser exemplo. Bem, ainda não sei exemplo do quê, mas se um dia descobrir, eu conto para o mundo. Certa vez, por conta desse “negócio” de exemplo, fui tema de conversa na casa de um amigo. Ele me disse que lá todos diziam que eu era exemplo de vida. Ele disse que eu não era exemplo, era apenas mais uma pessoa lutando pelo que queria. Mais um querendo mudar o rumo da vida. Gostei de ser “mais um na multidão”.
Voltando a escola. Fiz Formação para o Magistério. E não deixei de cumprir nenhuma atividade curricular, inclusive o estágio. Deixando a modéstia de lado, o fiz bem feito (risos). Neste período, estudava pela manhã, estagiava à tarde e a noite fazia os trabalhos do colégio e preparava as aulas do estágio. Foi cansativo, mas para quem tem amigos, tudo fica leve e agradável.
Terminado o colégio, veio o desejo de continuar os estudos. Na segunda tentativa passei em Letras, na UNEB – Universidade do Estado da Bahia. Mas como iria chegar ao Campus, se este fica em outra cidade, a 75km de distância? Quem me colocaria e tiraria do carro que leva os alunos que estudam a noite? Os motoristas e os colegas de carro fizeram isso por quatro anos. Tornaram-se amigos e juntos partilhamos muitas aventuras na estrada: carro quebrado nas madrugadas; carro atolado; batida em vacas, carona em caminhão tanque, fugir da fiscalização, mas também teve brincadeiras, piadas, música, sono, cansaço... Tornamos-nos uma família. Durante este tempo eu saia de casa 17:30. 19:10 chegava na faculdade e de lá saia às 23:10 e chegava em casa por volta de 00:30, isso quando o carro não dava o “prego”. Quando chegou a hora do estágio, eu havia conseguido um emprego como professora no colégio em que estudei. Foi uma loucura, mas consegui me sair bem em todas as atividades, sem negligenciar nenhuma.
Na faculdade fiz amigos, obtive novos conhecimentos, amadureci, mas meu maior ganho foi o amor a literatura. Hoje, sou uma apaixonada por este universo. Por esta paixão criei o blog Pesponteando retalhos literários, e vou passando os meus dias, ampliando meu mundo, avançando rumo a novos horizontes e perspectivas. Neste universo que frequento, leio o mundo de formas variadas, me expresso e creio ser entendida. Ainda não conquistei o cume da montanha, mas sair da base é algo encorajador.
Minha cadeira e meu conhecimento me levam a qualquer lugar. Ao longo da vida aprendi que posso chegar longe quando há vontade em mim e quando há alguém que acredite e sonhe comigo ou que pelo menos empurre minha cadeira (risos). Aprendi que só posso exterminar o preconceito das pessoas quando aniquilar o meu. Viver sendo portador de uma deficiência não é nada fácil, mas quem disse que viver é fácil? Ainda bem que Deus me presenteou com a família e com amigos perfeitos, sem os quais eu não seria metade do que sou.
Amar-me e me aceitar foi a chave de tudo. Foi a grande conquista que fiz, e a partir dela vieram todas as outras. Estou na luta! Tenho muito que realizar. Sou uma boneca de pano, sem graça e sem muito valor, mas ainda chego a Emília, e o Sítio ficará pequeno para mim. Enquanto isso vou pesponteando os retalhos da vida, relativizando tudo. Ainda bem que alguém descobriu a relatividade!