10 de outubro de 2010

A literatura infantil e a criança


Paula Ivony Laranjeira

As crianças são sujeitos agentes e, por tal, críticas e (co)construtoras de seu “universo” tão diferenciado do vivenciado pela lógica adulta, ressignificando assim, a realidade que lhes é apresentada para melhor entendê-la, ou como diria Walter Benjamim, constroem um pequeno mundo inserido no grande. Daí vem sua maneira individualizada de pensar, agir, falar, sonhar, imaginar, criar, e interagir. Sobre esta questão Ferreira reforça:

Ao significar que as crianças não se ‘limitam’ a reproduzir o mundo dos ‘grandes’ à sua escala mas, ‘pelo avesso’, o reconstroem e ressiginificam através de múltiplas e complexas interações com os pares, permite mostrá-las não só como autoras das suas próprias infâncias mas também como actores sociais com interesses e modos de pensar, agir e sentir específicos e comuns, capazes de gerar relações e conteúdos de relação, sentido de segurança que estão na sua gênese como grupo social. Ou seja, com um modo de governo que lhes é próprio, com características distintas de outros grupos sociais, como é o caso dos adultos, mas como quem nunca deixaram de desenvolver relações particulares (2002, p. 59).

Porém, por alguns séculos a criança foi considerada um “adulto em miniatura”, “tábua rasa”, “bibelô”, até que no século XVII, segundo Pilippe Ariès, o infantil surge enquanto faixa etária. E já que o conceito de infância e criança como temos hoje, inexistia, era impossível também que houvesse uma literatura voltada para elas. Assim, a Literatura Infantil surge no momento em que a criança é diferenciada do adulto e tem a necessidade de uma literatura própria que a ajude na composição de sua autonomia enquanto individuo.

Data do século XVII a primeira manifestação da Literatura Infantil, com Perroult e seu Conto maravilhoso ou Conto de fadas: narrativa simples, direta, que usa o mito e o cotidiano familiar para exemplificar comportamentos, com características especificamente voltadas para o imaginário. Aos poucos, como esboça Carvalho (1985), os deuses foram substituídos por heróis, animais miraculosos, personagens que não pertencem ao cotidiano, agindo assim, em tempo e espaço míticos.

Cabe dizer que a Literatura Infantil só tem seu inicio de fato com o surgimento da escola, já que nesta havia a necessidade de livros para inserir seus conceitos ideológicos. Inicialmente no século XVII, muitas criança (de diferentes classes sociais) tem acesso ao mesmo tipo de educação escolar, porém no século XVIII estas crianças são divididas em ricas e pobres, de um lado as aristocratas e burguesas e do outro lado as menos favorecidas, com isso o acesso aos livros foi sendo modificado, ao ponto de restar ás crianças pobres apenas o acesso às histórias folclóricas via oralidade. Vale ressaltar que a escola com a ascensão burguesia passa a ser uma necessidade para a classe emergente ganhar “status” e visibilidade, além disso, esta classe tinha a necessidade de instituir a moral, a religião, o amor à pátria, encarregando a escola de fazer esse papel, “moldando” as novas gerações de acordo seus interesses, e o modo escolhido foi por meio dos livros com histórias infantis, camufladas.

No século XVIII com o Iluminismo, a literatura passa a ser fonte de conhecimento, rompendo assim, com a fantasia dos Contos de fadas, daí seu caráter didático (Fábulas, aventuras, Contos moralistas) como distintivo desta que tinha por principio fazer da criança um adulto intelectualmente formado. Neste século os autores que mais se destacam são: Perroult, Daniel Defoe (aventura do pioneirismo), Hermam Meville (aventura ideológica), Alexandre Dumas (aventura histórica) e Conan Doyle (aventura policial).

Já no século XIX, com o espírito romântico e todo seu idealismo, se reestabelece a fantasia na Literatura Infantil. E se antes a nobreza era destaque absoluto neste mundo literário voltado para as crianças, neste momento, se dá a valorização do popular, da “cor local”. Assim, temos entre suas temáticas mais expressivas: Folclore (Alemanha), Liberalismo (França), Nacionalismo (Itália) e Critica (Inglaterra), sendo seus representantes mais conhecidos: Andersen (lirismo), Lorenzini (caridade, família, nacionalismo), Lewis Carrol (ridicularização), Dickens (miséria, injustiça) e os irmãos Luis Jacob e Guilherme Carlos Grimm.

No que se refere ao Brasil, a Literatura Infantil chega com a Família Real e a criação de escolas, porém sua primeira forma é exercida pelo jornalismo (1831: Jornal O adolescente, 1846: Jornal O mentor da infância, 1870: Jornal Imprensa juvenil, entre outros) e pelas traduções. O primeiro livro para crianças com autor nacional, visto que os livros infantis eram traduções, é publicado no Brasil, segundo Barbara Carvalho (1985) por Alberto Figueiredo Pimentel e se intitula Contos da Carochinha, seguido por outros do mesmo autor.

Posteriormente, Manuel José Gondim Fonseca escreveu o Conto do país das fadas, e vários outros. Ainda se destaca neste inicio Thales de Andrade, que começa a publicar em 1918; Viriato Correa, com o seu Arca de Noé, dentre vários títulos; é possível citar ainda, Erico Veríssimo, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Lygia Bonjuga, Ruth Rocha, e muitos outros.

Mas de onde surge este tipo de escrita? A Literatura Infantil foi influenciada por obras feita para adultos, por exemplo: As viagens de Gulliver (séc. VXIII) recebeu influência da História verdadeira (séc. II), de Luciano; do Oriente para o Ocidente veio Panchatantra, que da tradução[1] do sâscrito até o espanhol recebeu o nome de Calila e Dimna, o qual influenciou os escritores Esopo e La Fontaine; o Sendebar traduzido para o espanhol como Livro dos desenganos e Assanhamento das mulheres, muito semelhante ao As mil e uma noites, e que na tradução para o espanhol recebeu o nome de Barlaam e Josafá, que por sua vez se identifica com Lalita Visitara (a lenda do príncipe Josafá e a de Buda); a obra de Dom Ruan Manuel (séc. XIV), O Livro do patrimônio ou o livro do Conde Lucan, já influenciado por Calila e Dinma, Sendebar e As mil e uma noites, também influenciou Andersen e Perroult. Outro livro não escrito para crianças e que também influenciou Andersen e Perroult foi o Decameron, de Boccacio. Perroult juntamente com os Irmãos Grimm também foram influenciados pelo Pentameão, de Basile.E os clássicos ainda hoje serve como fonte de inspiração para muitos autores.

Assim, seguindo modelos adultos a Literatura Infantil dá os primeiros passos, mas a caminhada é efetivada com a diferenciação da criança com o adulto, e mais especificamente com a criação da escola. À medida que a sociedade vai mudando seus conceitos filosóficos e ideológicos, também ela, vai se transformando. No século XX, com os novos estudos psicológicos sobre infância e criança, a literatura dedicada a este grupo etário ganha temáticas voltadas para uma ressignificação do mundo interior da criança bem como para estímulos exteriores capazes de lhe causar mudanças comportamentais avigorando sua capacidade de imaginação e criação, buscando assim, contribuir de forma psico-social para a formação destes, além de fomentar a aquisição de conhecimento e/ou cultura. De acordo com SOUZA (1996)

A Criança conhece o mundo enquanto cria, e, ao criar o mundo, ela nos revela a verdade sempre provisória da realidade em que se encontra. Construindo seu universo particular no interior de um universo maior reificado, ela é capaz de resgatar uma compreensão polifônica do mundo, devolvendo, por meio do jogo que estabelece na relação com os outros e com as coisas, os múltiplos sentidos que a realidade física e social pode adquirir.

Por isso, a necessidade de “semear livros” para que as crianças possam atribuir os sentidos que lhes são manifestados durante o mágico encontro com mundos distantes, diferentes, maravilhosos, para que possam desde já conhecer a capacidade da Literatura Infantil em abrir caminhos e alargar nossa visão de mundo, dos mundos.

Assim sendo, uma difusão da leitura que seja realmente democrática é urgente em nosso país, pois os livros têm sido escritos, mas poucos são os leitores, poucos são os incentivadores – no que se refere à família, sociedade e políticas públicas.

A preocupação com o alheamento do homem em relação a natureza e sua natureza interior tem tocado diretamente o mundo da criança. A influência que a cultura exerce através de instruções escolares, da mídia, de valores que incitam o consumo desenfreado, da falta de tempo e espaço para ser criança, tem mudado o foco da leitura e compreensão da essência mais profunda com que cada criança adentra neste mundo literário

O que se observa é que atualmente tem-se formado mais telespectadores do que leitores. Conclusão: cidadãos mais passivos, crianças cada vez gozando menos da infância, lendo cada dia menos, padronizadas, e o pior, portadoras daquilo que Pierra Weil chama de “normose”, ou seja, conjunto de normas, valores, hábitos de pensar e agir, de caráter automático e inconsciente que leva o individuo a considerar normal certos modos de vida, como: não ter tempo livre, não conviver com a família, comer fora de casa (fast-food), crianças sobrecarregadas de atividades, ver todo tipo de programa de TV, iniciar vida sexual precocemente, etc.

Se a Literatura Infantil segue as necessidades da criança, e pensando a criança não mais tão infantil, tão plural, mas padronizadas e já caminhando para tornar-se um adulto precocemente, questiona-se: quais serão as novas características e temáticas da literatura de cunho infanto-juvenil neste século que se inicia? O esperado, depois deste percurso historiográfico, já que as utopias nos fazem ver e viver com esperança é que ela esteja comprometida com a propagação da solidariedade, amor e consciência, dando sentido assim, à nossa existência.


[1] O termo tradução neste contexto se refere ao processo de compilação, comum na época. Desta forma os textos iam sendo modificados, não era uma tradução fiel à obra original.


Este texto também está disponível em: http://palavrafiandeira.blogspot.com/2010/10/palavra-fiandeira-42.html

4 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Grande texto, P.
Parabéns!

CESAR CRUZ disse...

Paula, que artigo! Para mim, que sou pai de uma de 3 anos, que, desgraçadamente está por tempo demais à frente da TV, apesar do pai ser escritor e leitor contumaz, esse artigo valeu e muito. Vou começar agora mesmo a comprar mais livros infantis nos sebos, e menos livros para mim. Assim, deixarei brotar, de repente, livrinhos pelo quarto da minha Michele, cheio de figuras, formas e novos mundos.

obg!
bj, Cesar

Dolores Oliveira disse...

Paula, você sabe que esse é o meu mundo! Vivo a literatura infantil quase que rotineiramente, mas me surpreendo sempre com as releituras feitas pelos meus pequenos alunos! Graças a Deus, trabalho em um ambiente cheio de livros infantis, ocasião em que muitos dos meus alunos têm oportunidade de folheá-los e absorver o seu encanto. Sabe, muitos dos pequenos aos quais me refiro não tem nem o suficiente para o pão! Aí entra a grandeza da educação, pois fornece os livros e com eles a perspectiva de que pode ser diferente, que o futuro pode ser sonhado e melhorado. Beijos. Saudades...
Adoro você.

Penélope disse...

Um artigo muito bem elaborado.
Uma grande pesquisa, também.
É na infância que muitas coisas se estabelecem... uma delas é a experiência que as histórias proporcionam às crianças.
Ótimo, Amiga