27 de dezembro de 2009

O pêndulo de Euclides, de Aleilton Fonseca

Portal de entrada do Parque Estadual de Canudos


Bons dias, Seu Aleilton! Como tens passado?

Sabe, eu tô meio lá meio cá, mas vou vivendo assim, do jeito que Deus manda. O que se há de fazer, né?! E foi desse jeito, mesmo assim, com meus perrengues, que venho contar as “novi” de uma viagem que fiz. História triste e bonita, até dava um desses causos que o senhor gosta de contar, que nem Nhô Guimarães.

Fiz a viagem com uns amigos seus, pelo menos foi o que disseram. E não é que, com eles, tive o privilégio de conhecer Canudos e o “outro lado” da história? Na verdade, o que eu queria, mesmo, eram novidades, saber de coisas não “sabidas”, adentrar um mundo que de tão diferente do meu, fosse exótico, irreal, capaz de me abduzir. Mas eu já devia esperar... Andar com seu “povo” significa ir ao encontro do “eu” que há mim, e não o contrário.

Então chega aqui, que te conto “tudim”. Estava eu no meio do sertão baiano, sentada num canto qualquer, um sol escaldante, a água já se evaporava, e de repente passam três homens num carro. O engraçado era que o automóvel tinha até nome, vê se pode! Se chamava O pêndulo de Euclides, só depois entendi o porquê. O possante parou, os homens estavam um pouco atrapalhados com um mapa na mão. Fiquei com medo, afinal por aqui já passaram alguns meliantes fugindo da polícia, entre eles cito Leonardo Pareja – contudo, não pense que isto é para nós motivo de orgulho, muito pelo contrário – mas logo percebi que eram gente de bem.

Vendo minha crescente curiosidade sobre o que falavam, me seduziam para seguir com eles, oferecendo um “lugarzim” no carro. Bem, eu que não sou besta nem nada, fui. Mas olhe, confiei porque eram seus amigos, e tudo respeitador de moça donzela, pelo menos comigo, já que não me dou ao desfrute. Entretanto, vou confessar uma coisa: saí sem avisar minha gente que iria com eles, pois minha mãe do jeito que é não me deixaria ir. Assim, falei que iria ter com uns parentes em outra cidade. Ela nem sonha com as viagens que faço! Então, não espalhe!

Até chegar a Canudos fiquei “mudinha da silva”, só ouvindo as prosas dos três. O professor, um dos viajantes, é que vez ou outra explicava o que era, a mim, desconhecido. Os outros, um poeta e um estrangeiro, este último volta e meia fazia biquinho quando conversava sua língua “aportufrancesada”. Eu dava era risada. E lá íamos, eu no banco carona e o professor dirigindo, e ele, às vezes, me olhava de soslaio com um riso de adulto que vê criança se lambuzando com doce. Contudo, ali estava acontecendo o descobrir do mundo. O mundo de Euclides, do Conselheiro, de Canudos e de um “outro” sertão.

Eles sempre com suas prosas, e, eu atenta, ouvindo as “sabidurias” que falavam. É preciso lhe falar, meu amigo, que eu já tinha ouvido falar do Conselheiro. Porém, no pouco que ouvi, parecia ele um fanático, com pinta de doido, misturado com Francisco de Assis, só que cabeludo. Mas veja só, Seu Aleilton, eu que era lá revoltada com os desmandos de antigamente, por causa do sofrimento do povo sem vez e voz, depois de ouvir as histórias que eles falavam, passei a achar o Conselheiro um homem santo, um tanto parecido com Moisés, o “cara” lá da Bíblia, que queria salvar seu povo da escravidão, retirar do deserto e levar para a “terra que corre leite e mel”.

Confesso, caro amigo, que fiquei impressionada com essas histórias. Mas, olhe, coisa bonita, mesmo, foi conhecer as histórias do Euclides, o homem que escreveu Os sertões. Fiquei sabendo que ele foi mandado para Canudos para escrever a bem das autoridades, mas aí, chegando lá, ele viu a verdade. Sabe Seu Aleilton, eu até acho que ele chorou de tristeza com tudo aquilo: soldados aos montes, canhões, armas de fogo e tudo o mais matando criança, velho, famílias inteiras. E quando a gente pensa nos motivos que levou a essa Guerra... Fico pensando que assim deve ser essas guerras do exterior, por esses motivos que o senhor já deve saber. Porém, não espalhe que tal segredo só pode ser “sabido” por quem viaja em O pêndulo de Euclides.

Tarde em Canudos, vendo-se o Cocorobó e parte do Anfiteatro de Guerra

Continuando minha história... O professor me contou uma novidade: disse que lá durante a Guerra, quando o povo de Canudos estava encurralado, com sede e fome, o doutor Euclides em sua tenda no meio da Guerra foi visitado por um soldado canudense, que entrou por baixo da lona. E ali, naquele instante, passaram a existir dois homens com medo da morte. No entanto, o que me surpreendeu foi o que aconteceu depois, mas essa é outra história que lhe conto pessoalmente.

O fato é que não demorou muito e chegamos a Canudos. E eu, pensei que iríamos ficar em hotel de luxo, daqueles que aparecem em filmes e novelas! Pousamos foi na pensão de D. Elza. Mas olhe, valeu a pena, exceto pela carne de bode, pois não gosto. O mais estava supimpa! Até parecia que eu estava em casa. Por um instante fechei os olhos e tive a impressão de ver aquela senhora se transfigurar em minha mãe: seus modos, o preparo das comidas, o acolhimento às visitas. Se soubesse teria convidado minha Mel[1] para vir conosco, penso que daria longas prosas com a anfitriã da pensão.

Vixe! Já ia me esquecendo de falar! Conheci o Parque de Canudos. Olhei aquilo tudo com lágrimas e muita tristeza dentro de mim. Tive vontade de sair correndo para não ouvir aqueles clamores, vozes, gemidos e tiros que pairavam no ar. Saber das coisas da guerra foi doído, mas os meus três amigos que eram de muita “sabiduria” das coisas, disseram que ainda tem mais coisas a se falar, principalmente, as histórias do povo, aquilo que mistura o lendário ao real.

Eta, Seu “Alê”, figura luminosa para se apreciar na viagem é seu Ozébio, um velhinho cheio de sabedoria, que, às vezes, virava ator para enganar com sua caduquice alguns pesquisadores. Ainda bem que ele se afeiçoou da gente e contou sua história, a de Canudos, da Guerra e me deixou com uma pulga atrás da orelha. E quem não ficaria...

O Grand Finale desse mágico passeio se deu num auto, O auto de Belo Monte. Esse negócio de auto me traz tantas recordações: Ariano, João Grilo, Chicó, Cleriston, Diego, CESC. Mas deixa pra lá que não vem ao caso. Depois voltamos para casa. E assim, naquela viagem, n’O pêndulo de Euclides, as coisas da vida iam se misturando às coisas dos livros e a fantasia invadia a realidade e vice-versa, de modo que não se podia mais separar.

Hoje, tantos dias passados, deu vontade de refazer a viagem, revisitar aqueles lugares, voltar a falar com as pessoas, tomar água de coco na feira, provar as iguarias... “Peraí”! Ei Seu Aleilton, esqueci de falar daqui, do meu sertão, um lugar tão diferente do de Euclides, mas parecido com o seus, os quais visitei em Jaú dos bois; O canto de Alvorada; O desterro dos mortos; Nhô Guimarães e também agora em O pêndulo de Euclides. No meu sertão tem feira igual a que visitamos em Canudos; tem hotel que mais se parece com pensão; tem essa mesma gente que por lá encontramos. Claro, tem outras gentes também; tem esse acolhimento, comidas caseiras, tudo preparado na hora; temos também nosso “Conselheiro”, o padre Aldo Lucchetta, já falecido, e por pouco não tivemos “com” ele uma guerra. Vai ver são estas “semelhanças” que me prendem a você, ou talvez seja esse seu jeito de contar histórias diferentes da minha, mas que lá no fundo são parecidas. Isso enternece a gente e, para não dizer que faz chorar, vou pedir licença a Guimarães, o Rosa, para dizer que nos faz “babar pelos olhos”. Acho que estou alongando por demais esta prosa, então Seu “Alê” – perdoe-me a intimidade – vou ficando por aqui. Outro dia lhe conto outras viagens.

Dê lembranças à família.

Abraços... Paula Ivony Laranjeira.


Biobibliografia de Aleilton


"ALEILTON (Santana da) FONSECA nasceu em Itamirim, hoje Firmino Alves - Bahia, em 21/07/1959. É poeta, ficcionista, ensaísta e professor universitário. Em 1977, começa a publicar contos e poemas no Jornal da Bahia, de Salvador, tendo vencido 3 vezes o seu Concurso Permanente de Contos. Publica também no suplemento A Tarde/Novela, do jornal A Tarde. Em Ilhéus passa a assinar a coluna "Entre Aspas", no Jornal da Manhã. Ainda neste ano, vence um prêmio de contos da Editora Grafipar, do Paraná, além de outros locais. Em 1979, ingressa no curso de Letras da UFBA. Organiza seu primeiro livro de poemas, que recebe Menção Honrosa no concurso Prêmios Literários Universidade Federal da Bahia.

Em 1984 ingressa, como professor, no curso de Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, transferindo-se para a cidade de Vitória da Conquista. Publica o livro de poemas, O espelho da consciência. Em 1988, especializa-se em Literatura brasileira, ao ingressar no Mestrado em Letras, na Universidade Federal da Paraíba. Em 1992 defende tese de mestrado, sobre música e literatura romântica. Em 1997, defende a tese de doutorado intitulada: “A poesia da cidade: Imagens urbanas em Mário de Andrade”, que sairá em livro proximamente.

Ainda em 1996 retorna a Salvador, onde fixa residência. Concorre ao "Prêmios Culturais de Literatura" da Fundação Cultural do Estado da Bahia, com o livro Jaú dos Bois, que fica entre os vencedores (3o Lugar) e é publicado pela Relume Dumará, em 1997. Em 1998, funda, em parceria com Carlos Ribeiro e outros escritores, Iararana – Revista de arte, crítica e literatura, periódico de divulgação da geração 80. Em 1999, transfere-se para a Universidade Estadual de Feira de Santana, integrando-se ao grupo fundador do curso de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural (PPgLDC), tendo já orientado várias dissertações concluídas.

Em 2003 leciona, como professor convidado, na Universidade de Artois (França). Neste ano e nos seguintes faz palestras nas Universidades: Sorbonne Nouvelle, Nanterre, Artois, Rennes, Toulouse Le Mirail (França) e ELTE (Budapeste). Tem participado de diversos eventos universitários e culturais em vários estados do país. Em 2001 publica o livro de contos O desterro dos mortos. Nesse ano recebeu o Prêmio Nacional Herberto Sales – Contos, da academia de Letras da Bahia, com o livro O canto de Alvorada, publicado em 2003,com 2ª edição em 2004, pela Editora José Olympio. Em 2005 co-organiza (com o escritor Cyro de Mattos), o livro O triunfo de Sosígenes Costa: estudos, depoimentos, antologia (Ilhéus: Editus; Feira de Santana, UEFS Editora, 2005.), que recebeu o Prêmio Marcos Almir Madeira 2005, da União Brasileira de Escritores-RJ.

Em 2009 completou 50 anos e foi homenageado pelo Lycée des Arènes, em Toulouse-França, com uma exposição de trabalhos de alunos sobre seu livro Les marques du feu. Na Bahia foi homenageado pelo IL-UFBA. Neste mesmo ano, seu romance Nhô Guimarães foi adaptado para o teatro e encenado em Salvador e outras cidades. É correspondente da revista francesa Latitudes: cahiers lusophones. Desde 2005, pertence à Academia de Letras da Bahia, ocupando a cadeira nº 20. É membro da UBE-São Paulo e do PEN Clube do Brasil.

Livros de poesia, ensaio, contos e romance:

  • Movimento de Sondagem. Salvador; Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981. “Coleção dos Novos, vol. 2 – série Poesia”

  • O espelho da consciência. Salvador: Gráfica da UFBA, 1984

  • Teoria particular (mas nem tanto) do poema — ou poética feita em casa. São Paulo: Edições D’Kaza, 1994

  • Enredo romântico, música ao fundo. (ensaio) Rio de Janeiro: 7 Letras, 1996

  • Oitenta: poesia e prosa. Coletânea comemorativa dos 15 anos da “Coleção dos Novos”. Salvador: BDA-Bahia, 1996. (org. Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro)

  • Jaú dos bois e outros contos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997

  • Rotas e imagens: literatura e outras viagens. Feira de Santana: UEFS/PPGLDC, 2000. (Org. Aleilton Fonseca e Rubens Alves Pereira)

  • O desterro dos mortos (contos) Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001

  • O canto de Alvorada (contos). Rio de Janeiro: José Olympio, 2003

  • O triunfo de Sosígenes Costa. Ilhéus: Editus, 2004. (Org. Cyro de Mattos e Aleilton Fonseca)

  • As formas do barro & outros poemas. Salvador: EPP. 2006

  • Nhô Guimarães (romance). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006

  • Todas as casas (contos, livro coletivo). Salvador: EPP, 2007

  • Les marques du feu et autres nouvelles de Bahia. Paris: Lanore, 2008. (Tradução de Dominique Stoenesco)

  • Guimarães Rosa, écrivain brésilien centenaire. Bruxelas, Librairie Orfeu, 2008

  • O olhar de Castro Alves. (org.). Salvador: ALB/ALBA, 2008

  • O pêndulo de Euclides (romance). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009"


Disponível em: http://www.academiadeletrasdabahia.org.br/Academicos/aleilton.html



[1] Apelido que dei à minha mãe.


3 comentários:

Ahab disse...

ÉÉÉÉÉ... Esse povo que sofreu na guerra dos canudos e ainda sofre com a guerra dos coronéis é forte mesmo.

Penso eu que esse povo já sofreu e sofre tanto que nem deveriámos exaltar seus deméritos e sim as feiras, a boa conversa, a dona da pensão acolhedora... De sofrimento já basta a vida. Viva a alegria dos forasteiros então.

Direto do Rio.
Beijinhos Dona Paula Ivony Laranjeira.

Dolores Oliveira disse...

Paula, tive o prazer de me deleitar e viajar de carona junto com você no "Pêndulo de Euclides", uma viagem interessante, diga-se de passagem. Em sua escrita dá para perceber a adequação do tempo ao movimento do automóvel na estrada, à sua observação do motorista, do acompanhante, da consciência de estar também sendo observada. Dá até para imaginar o balanço do carro, o roçar da brisa morna nos cabelos, impressões do relevo, cheiro de relva prensada pelos pneus... A emoção inusitada de sair do previsível e se aventurar longe de casa materna e muito perto de um dos mais importantes espaços da criação literária de Euclides da Cunha.(imaginação, "seres de papel" é claro!) Tudo proporcionado por um papel em branco e uma mente brilhante. Parabéns! Quero ler o livro.

MARIA SEILMA NEVES SOUZA disse...

Aleiton, dentre as dificuldades oferecidas na vida, bom é saber que barreiras foram derrubadas até encontrar-se na posição atual. Orgulho-me de termos freqüentado na adolescência o mesmo espaço escolar e poder hoje vivenciar a sua brilhante vitória. Parabéns.