3 de fevereiro de 2009

Nga Muturi: um convite a cultura africana


Por: Paula Ivony Laranjeira


O universo africano com sua vasta cultura material e imaterial, bem com o estado de coisificação e alienação a que foram submetidos seus povos, podem ser vistos no conto “Nga Muturi”, de Alfredo Troni, que traz uma narrativa em 3ª pessoa, com um enredo não-linear, permeados de experiências e características de um África colonial, onde o negro exercia um papel secundário. Nele conhecemos a história de Nga Muturi, uma mulher negra, africana, que ainda criança foi retirada do seio da família e entregue a um comerciante branco como pagamento de um “quituxi” do tio. Tornando-se escrava, fica sob os “mandos” do seu senhor branco, que com o passar dos anos morre, deixando à escrava amante sua herança. Nga Muturi para homenageá-lo, realiza os ritos fúnebres com muita pompa. De escrava passa a condição de mulher livre, que mesmo sendo analfabeta e muitas vezes “passada para trás”, consegue se preservar nos moldes da sociedade da época, e manter sua fortuna, como se ver nos seguintes trechos “É muito considerada pelas boas famílias. Faz os seus presentes”(p.45) e “É uma boa cidadã, paga bem os impostos
(...)”(p.46). Mas também, é possível perceber outras pequenas histórias no conto, como a de Chica, uma mucama que tem caso com o Serra, e a história de Bebeca, que de mucama de Nga Muturi passa a ser tratada como filha pela mesma.

Inicialmente, o que mais chama a atenção no conto é a inserção de elementos da língua Ioruba, que desde o titulo “Nga Muturi”(Senhora Viúva), nos faz adentrar nesse universo mágico da literatura africana, até então desconhecida. Nos trechos: “cala-se quando lhe perguntam se é buxila”(p.31) ou “e com o nfungi apresentou-a ao irmão e a ela(...)Parecia uma tambi (p.32) percebe-se expressões e palavras que tornam o conto mais próximo da realidade dos africanos que falam a língua portuguesa, levando os leitores a perceber que o autor é um africano. Segundo Rita Chavez (2007) ao trazer para a literatura algumas marcas da oralidade, os autores revitalizam “a escrita através do questionamento dos modelos ocidentais”, exprimindo assim “o impasse criado entre a recusa de uma tradição imposta pelo sistema colonial e a impossibilidade de retornar integralmente a tradição que fora submetida ao amordaçamento pelo sistema” .Assim ao inserir elementos próprios à língua oral em sua obra, mais especificamente da língua dos iorubas, Troni comprova que o apego à oralidade não é sinal de fragilidade ou impotência, mas símbolo de que os africanos, ainda que inconscientemente, respiram sua própria identidade, e resistem ao aniquilamento da sua memória e tradição.

Ainda com referência a força da linguagem africana , poderia se destacar no texto de Troni a mudança de nome da personagem central de acordo com sua mudança de vida, na juventude Nga Ndreza; no tempo de mucama, Nga Muhatu ; e na viuvez, Nga Muturi. Isso prova que o nome revela a essência daquele que o usa, podendo assim, variar.

Em "Nga Muturi" se percebe a fusão de elementos dos colonizadores portugueses com elementos africanos. Provavelmente o mais perceptível, seja os referentes à morte e seus ritos, que no conto podem ser associados com as missas, a beatificação do caixão, a passagem do cortejo pela igreja, a presença da cruz como marca do cristianismo, relação essa evidenciada nos seguintes trechos: “O enterro foi pomposo”(p. 37), “Houve as encomendações costumadas e saiu o cadáver acompanhado (...)” (p.39), “Vinham dois sacristãs, um com o hissope e outro com a cruz” (p. 38), “Aproximava o aniversário do óbito. Já se falava nas missas (...) ” (p. 41). De acordo com Kabenguele Munanga (2007)

"Os grandes funerais africanos são festas ruidosas que reúnem pessoas de todas as idades num ambiente de excitação sustentado pelas danças, cantos, arengas, ritmos de tambores, comidas e libações. Pouco a pouco a atenção se desvia da morte real, inaceitável em sua dimensão individual e afetiva, para se içar ao plano simbólico onde a morte é garantia de um excedente de vida."

Assim, percebemos que a sociedade africana tem como uma de suas tradições essa comemoração da morte, que deve ser celebrada com toda pompa, para demonstrar o “prestigio” do defunto, e o conto “Nga Muturi” faz isso de maneira brilhante.

Mas Alfredo Troni expõe outro aspecto presente entre a populaçãonegras de uma África colonial, e que perpetua até nossos dias, que é o estado de coisificação a que são submetidos os negros. No conto, a personagem principal é retirada dos braços da mãe, vendida, levada de um lado para outro como um pequeno objeto inerte e sem vontade. Nga Muturi é o retrato dessa “coisa” que o negro se tornou, despojado de suas crenças, costumes, vestuário, família, amores, de sua essência, enfim, de sua cultura. É importante ressaltar que esse estado de coisificação na revela submissão passiva do africano, mas demonstra o estado de alienação em que vivem muitos negros.

Nesse conto a realidade e ficção estão presentes, talvez muito mais realidade. Pois é conhecida de alguns a história da África, suas guerras, o excedente da escravidão em que ainda vivem, problemas sociais, bem como sua rica cultura, todos os elementos que o compõe enquanto povo africano, afro-descendente ou simplesmente “negro”.

Mas o autor africano ainda deixa lugar para o indizível. É possível perceber silêncios, sentimentos que deveriam ser ditos, mas que Nga Muturi prefere não dizer, são vazios que não podem ser preenchidos devido às convenções daquela sociedade, já que preencher seus vazios identitários, significa assumir que um dia foi escrava, usada a revelia do seu querer, coisificada pelo seu senhor. Destarte, Troni em seu conto, nos apresenta o rosto cultural da África.


Referência bibliográfica

(não disponível para esta publicação)



Gostaria de saber o que você achou do texto acima...espero o comentário.....Volte sempre, prometo está postando outros textos...Bjs

8 comentários:

Eu sou a Fabiana Carneiro, disse...

Muito bom, não apenas o seu texto, mas o blog todo em si! Parabéns e fique a vontade para acompanhar o meu! Será um prazer. Acompanharei o teu tb!

Fernanda Fernandes Fontes disse...

Olá.

Infelizmente temos pouco, ou quase nenhum contato com a literatura africana. Fui apresentada a este mundo em um curso para contadores de história, no qual conheci o conto "A carta", de um autor (esqueci o nome!!!) desta região. Simplesmente maravilhoso!!!!

Precisamos realmente buscar outros olhares na literatura. Tem muita coisa boa por ai...

Bjs!

PS.: Este mês o Degustação Literária completa 1 ano...apareça!

Escritora Tânia Barros disse...

Gostando das suas resenha. Viva a literatura e aos que a difundem com tanto amor e talento.
bjs.

Anésio da Costa disse...

Olá.
Estou fazendo uma especialização em história e cultura afrobrasileira e indígena, em uma das disciplinas estudamos a noveleta Nga Muturi de Alfredo Troni, até então nao conhecia nada da literatura africa de lingua portuguesa, fiquei maravilhado com o texto.
Foi pesquisando sobre esse texto que encontrei sue blog, achei-o interessantissimo.
Sua análise sobre o texto de Troni também é primoroso.
Um abraço e até mais.

Anônimo disse...

Muito bom seu blog, adorei de verdade!
Parabéns!

Maritaca disse...

Adorei este seu blog, seus retalhos, na verdade é uma linda colcha.
Parabéns!!
Kel

Maritaca disse...

Manda o texto mesmo!
abraço!
Kelly

Unknown disse...

Seria bacana rever o uso do termo "escravo" ("escravizado" denota melhor que o status de submissao desses povos foi no passado) e informar as referências a que se fez alusão. Gostei muito da resenha e senti vontade de buscar as leituras trazidas neste trabalho.