Sempre gostei de enviar e receber cartas. A sensação da carta na mão faz disparar o coração. A alma tenta prever, sem sucesso, o que o envelope, ainda não aberto, guarda. Às vezes, o remetente pode prenunciar algo desconhecido, outras vezes, algo desejável, esperado. Mas agora, o e-mail, meio de correspondência mais rápido - ajuda a economizar papel, a poupar árvores, mas também, impede de sentir a fragrância que se esconde em algumas cartas, de perceber a lágrima caída que borra as letras, de tocar via imaginário a mão que escreveu a carta - toma conta das relações que vivem na distância. E agora o que acontecerá com as cartas?
Quando era criança perdia tempo mexendo numa caixa cheia de cartas e cartões que havia em minha casa. Lá meus irmãos guardavam cartas/cartões que recebiam de seus amores; meus pais depositavam os cartões que recebiam em datas especiais. Eu lia tudo. Tomava posse de tudo aquilo como se me pertencesse, mesmo nada se destinando a mim. Ainda tenho na alma o gosto daquele ato bisbilhoteiro. Era um prazer que tempos depois descobri ao ler alguns livros.
Quando minha família não mais recebeu as tais correspondência, visto que meus irmãos foram se casando, e os cartões à meus pais foram substituídos por "presentinhos", eu, enfim, comecei a sentir o gosto de receber cartas/cartões enviados por parentes, amigos e colegas. Trago todas guardadas para que um dia, alguém movido pela curiosidade, sinta o prazer da leitura de algo que não lhe é endereçado.
Imaginem então, como me sinto feliz quando descubro que alguns autores tem suas correspondências publicadas em livro. Senti aquele gostinho novamente. Um gostinho duplo, proporcionada pela leitura e pelas correspondências. Já que não acho interessante publicar aqui minhas correspondências, segue abaixo alguns trechos de cartas trocadas entre Dummond e pessoas ilustres e com anônimos:
ILUSTRES De Drummond para Graciliano Ramos, 1945:
"Meu caro e grande Graciliano: Até o mais espinhosos dos amigos --ou dos críticos-- reconhecerá em 'Infância' a obra de arte que ela realmente é. Nada lhe falta, nada lhe sobra. A palavra justa exprimindo sempre uma realidade psicológica ou ambiente; a notação precisa; a dosagem sábia; a economia absoluta de efeitos, notações, recursos. Enfim, um desses livros que a gente desejaria ter tutano para escrever, e que lê com uma admiração misturada de raiva pelo pelo danado que conseguiu compô-la: raiva que é o maior louvor, tanto vem ela impregnada de entusiasmo e prazer. (...)"
De Drummond para Clarice Lispector, 1945:
"Clarice, querida: Ler ou reler você é sempre uma operação feliz: descobrem-se coisas, aprimora-se o conhecimento das descobertas. Senti isso percorrendo "De Corpo Inteiro"! e "Visão do Esplendor". Obrigado, amiga! O abraço, a admiração, o carinho do Drummond."
De Carlos Lacerda para Drummond, 1975:
[no Natal, Lacerda envia bilhete oferecendo um livro da Nova Fronteira, editora que criou] "Para Carlos Drummond de Andrade, que não gosta de mim mas certamente gosta de Fernando Pessoa e há de goastar do Otávio Araújo, a Nova Fronteira oferece, Natal de 75, Carlos Lacerda".

De Drummond para Lacerda, 1975:
"Agradeço-lhe vivamente, e à Nova Fronteira, o magnífico exemplar de 'Ode Marítima' de Fernando Pessoa, com que me distinguiram neste Natal. Realmente, é um fino objeto de arte, a que Otávio Araújo deu contribuição relevante, para maior glória do poeta. Parabéns à arte gráfica do nosso país. A afirmação de que 'não gosto de você' seria pelo menos exagerada, se não fosse, como é, totalmente errada. Ninguém é indiferente ao 'charmeur' fascinante que você é, e mesmo os que supõem detestá-lo, no fundo gostam de você. Gostam pelo avesso, mas gostam. Quanto a mim, tenho presente que fomos bons camaradas na luta perdida da ABDE, e que lhe dei o meu voto para Governador (voto de que não me arrependi, em face dos lances criativos do seu Governo). Apenas, discordei de posteriores atitudes políticas de você, o que é coisa comum na vida, e não afeta relacionamento pessoal. Certo?"
NEM TÃO ILUSTRES:
De Laudinor Brasil (Vitória da Conquista-BA) para Drummond, 1944:
"Com a presente, estou lhe enviando um soneto que escrevi, após a leitura do seu grande livro de admiráveis poemas - Poesias. Que tal? Presta? Não presta? Pouco importa. Tem para mim um sincero valor: --a intenção de rende ruma homenagem ao grande poeta que, ao lado, ou melhor, à frente de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e outros-- vem enriquecendo, com a cooperação de príncipe indiano, a poesia brasileira.
[ e vem o soneto]
Destino...
Como Carlos Drummond de Andrade, achei
Uma pedra tambem no meu caminho.
E, porque a vi, a meditar sozinho
Os segredos da vida desvendei.
Vi que o Destino é sempre o eterno rei,
Tiranico, sarcástico, escarninho.
E vi, morrendo, à voz do rei mesquinho,
As ilusões mais doces que eu sonhei
[o poema e a carta continuam] (...)"
De Drummond para Laudionor Brasil, 1944:
"Recebi há dias sua carta e o soneto que a acompanha. Muito obrigado. Mas confesso-lhe que me surpreendi ao ver surgir, ao lado de minha modesta e atacada 'Pedra no caminho', um soneto que lhe interpreta e desenvolve o sentido. Porque a referida pedra --vou usar de toda a franqueza-- não tem sentido algum, a não ser o que lhe dão as pessoas que a atacam e com ela se irritam. É uma simples, uma pobre pedra, como tantas que há por aí, nada mais. O poema (se assim se pode chamar) em que ela aparece não pretende expor nenhum fato de ordem moral, psicológica ou filosófica. Quer somente dizer o que está escrito nele, a saber, que havia uma pedra no meio do caminho, e que essa circunstância me ficou gravada na memória. Como vê, é muito pouco, é mesmo quase nada, mas é o que há. Suas palavras a respeito de meu livro são muito generosas. Mas acho que não têm razão de ser. O melhor é nós contemporâneos não nos julgarmos uns aos outros. Já é tão difícil e dá margem a tantos erros julgarmos os antigos! Ninguém sabe o que vai ficar do que se escreve em nosso tempo.Provavelmente ficará o que hoje não agrada ou não é percebido. Tudo é muito nebuloso e discutível, no presente. E quase nada resiste ao tempo. Já não falo na posteridade: falo em cinco, dez anos mais tarde...
Desculpe se estas palavras lhe pareceram mal humoradas, pois ralmente não o são. Minha intenção é o menos irritante possível. Quis ser sincero com um patrício distante, que me escreveu sobre poesia e que revela, talvez, um excessivo entusiasmo, de que eu não participo. Agrada-me saber que em Conquista alguém se preocupa com versos e se lembra de escrever a outra pessoa que também se preocupa com eles. Mas não convém admirar demais: e eu lhe juro que nem eu nem nenhum dos poetas citados em sua carta somos príncipes indianos, que enriquecem a poesia brasileira.
Cumprimenta-o com simpatia cordial, contente por havê-lo conhecido,
De Drummond para Yola Azevedo (São João da Boa Vista-SP), 1982:
"Na leitura observei pequeninas coisas, que lhe transmito pelo meu vezo de reparar em coisas pequeninas e dar-lhes importância formal. A primeira não será assim tão mínima, por isso lá vai de saída. Eu acho que o problema que se apresenta ao escritor novo, atualmente, é estabelecer certo equilíbrio natural entre linguagem escrita e linguagem falada. Ele precisa usar o vocabulário e a construção do dia, mas deve utilizar as expressões antigas e elegantes que constituem o tesouro da literatura, representado, digamos, por um Machado de Assis. Na boca de uma personagem, cabem todas as gírias e modismos referentes ao seu meio social, mas já na escrita do narrador eles devem ser evitados. Dizer por exemplo que uma sucessão de mortes "é incrível", está bem quando é a pessoa imaginária quem fala, mas para o escritor nada é incrível, inenarrável, assombroso. Os adjetivos desse tipo são uma fuga à obrigação de definir o fato ou a sensação. Uma sucessão de mortes, brutal e imprevista que seja, pode ser contada também de maneira brusca e seca: "Perdeu o irmão num acidente, o pai de infarto, a mãe de trombose. Em três meses." (Ou cinco, ou seis). Ou coisa parecida. Já o leitor, vendo isso, tem o direito de dizer: "É incrível!". (...)
Acho bom, também, evitar expressões esteriotipadas, como "divino milagre" (todo milagre é divino), "fazer das tripas coração", "mergulhar num mar de tristeza", que são lugares-comuns. Deixar de lado, igualmente, citações desnecessárias, como a do inferno de Dante, que se popularizou e é usada por todo mundo que nunca se aproximou da "Divina Comédia". Citação é ótima quando totalmente inesperada. (...)
Repare como a palavra "muito" nem sempre indica muito, mesmo. Às vezes "senti falta" diz mais do que "senti muita falta". O substantivo bem empregado é sempre forte em expressividade, e não raro dispensa a muleta do adjetivo.
Como você vê, são coisinhas, pinçadas pela mania que cultivo, e que você acatará ou não, sem o menor constrangimento. Por favor, não me tome por um censor literário, crítico ou coisa que o valha; tenho horrora essas coisas, mesmo porque não tenho formação especializada para criticar, e confio muito na autocrítica do autor, que se desenvolve com o tempo até tornar-se afiadíssima. Se me permiti apontar essas coisicas foi porque confio em sua força e compreensão. Valeu? (...)"
De Drummond para Edmílson Caminha (Fortaleza-CE):
1982: "Haverá nada mais fino, obsequioso e encantador do que um casal cearense? Vocês dois nos maravilharam com o belíssimo presente do artesanato local, que eu chamarei, com justiça, de objetos de arte. (...)".
1983: "Sua amizade é das que não falham _espécie preciosa e reconfortante. Envelhecer não é assim tão difícil quando se conta com esse apoio moral. Obrigado pelas palavras de carinho e pelo inigualável doce de caju, uma das glórias cearenses que não me canso de celebrar... e de degustar. (...)"
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), possui 1.812 correspondentes registrados no arquivo do poeta na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio.
O POEMA DA BAHIA QUE NÃO FOI ESCRITO
-Carlos Drummond de Andrade-
Um dia – faz muito tempo, muito tempo –
achei que era imperativo fazer um poema sobre a Bahia,
mãe de nós todos, amante crespa de nós todos.
Mas eu nunca tinha visto, sentido, pisado, dormido, amado a Bahia.
Ela era para mim um desenho no atlas,
onde nomes brincavam de me chamar:
Boninal,
Gentio do Ouro,
Palmas do Monte Alto,
Quijingue,
Xiquexique,
Andorinha.
– Vem... me diziam os nomes, ora doces.
– Vem! ora enérgicos ordenavam
Não fui.
Deixei fugir a minha mocidade,
deixei passar o espírito de viagem
sem o qual é vão percorrer as sete partidas do mundo.
Ou por outra, comecei a viajar por dentro, à minha maneira.
Ainda carece fazer poema sobre a Bahia?
Não.
A Bahia ficou sendo para mim
poema natural
respirável
bebível
comível
sem necessidade de fonemas.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro: Record.