Dias atrás recebi um e-mail com a música Metade cantada por Oswaldo Montenegro e tendo como autor Ferreira Gullar, porém há aí um equívoco, pois a autoria da música é do Montenegro. O Ferreira Gullar tem um texto de nome Traduzir-se. Resolvi trazê-los para que vocês possam refletir um pouquinho, se preparando para o Ano vindouro. Ambos os textos são lindos!
METADE - Oswaldo Montenegro-
Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.
-Do libreto da peça teatral João sem Nome lançado em 1975-
TRADUZIR-SE - Ferreira Gullar
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
-Na Vertigem do Dia (1980)-
Estou de volta....bjs Paula
4 comentários:
A ideia se reflete
mas segue caminho diverso.
Adeus, ano novo!
Excelente percepção, Paula! Eu não conhecia o poema do Ferreira Gullar, mas a música eu conhecia, tive esse disco, na época dos discos...
Pois bem: sempre achei sensacional a letra dessa música, e agora vc me diz que é do próprio Oswaldo Montenegro. Acho, pessoalmente, que se trata de um pastiche criado pelo Montenegro a partir do poema do Gullar. Posso estar sendo preconceituoso, mas a princípio a lógica do talento incomparável me leva a crer nisto.
bjos pra vc
Cesar
César, estava procurando a data do texto do Montenegro. Só agora encontrei. Espero q a informação esteja correta. É parece q "Metade" veio antes de "Traduzir-se". Desculpa a confusão.
Olha, quem diria, hein, Paula?! Viu, como funciona o preconceito na cabeça da gente? rs. Eu juraria por Deus que o plágio era de lá prá cá, mas ao contrário: foi daqui prá lá.
É mais ou menos como se eu aqui, o pobre Cesar Cruz, fosse plagiado pelo Guimarães Rosa e pudesse provar que escrevi o texto antes dele!
Salve o Montenegro!
Bjo!!!
Cesar
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