SOUZA, Paula Ivony Laranjeira de. Memórias do cativeiro: vivências e resistências da mulher negra. In: História: Sujeitos, Saberes e Práticas. 29/07 a 01/08 de 2008, Vitória da Conquista - BA: UESB, Anais Eletrônicos IV Encontro Estadual de História ANPUH-BA. Dispovível em: http://www.uesb.br/anpuhba/anais_eletronicos/paula_laranjeira.pdf Acessado em: 27/11/09.
A partir da segunda metade do século XX começam a surgir vários movimentos negros como: Gens, Quilombhoje, Negrícia, que possibilitaram uma maior discussão sobre o negro e conseqüentemente maior desenvolvimento da literatura afro, seja através dos Cadernos Negros, de algumas editoras ou através de publicações independentes. Mas apesar do reconhecimento cada vez maior, dentro e fora do país, de autores que trabalham com temáticas negras, ainda há um longo caminho até o reconhecimento da excelência da literatura afro-brasileira, que poderia ser citada apenas como literatura, pois o termo literatura afro gera uma espécie de segregação “sob a capa de aparente valorização” (Domício Proença Filho apud DUARTE, 2002, P. 49), no entanto, Miriam Alves atesta, “o que nós poetas negros vivemos hoje não é um gueto. Gueto é quando se é segregado pelos outros. Hoje nós vivemos o quilombo; a revolta que nós mesmos provocamos (...)” (apud LOLBO, 1993, p. 162).
Na literatura, grande espaço tem sido reservado a discussões e debates teóricos sobre a temática negra. O que observa é que tem-se ao longo do tempo uma tradição literária marcada por uma escrita masculina e branca, que reservava a mulher apenas o papel de coadjuvante, papéis estes, estereotipados, e cujas obras produzidas só poderiam ser publicadas mediante o uso de pseudônimos. Com exceção, destaca-se Maria Firmina dos Reis, no século XIX, com o lançamento de “Úrsula”, o primeiro romance abolicionista. E apesar da autora viver num contexto de extrema segregação racial e social, apresenta em Úrsula uma visão positiva do negro, sem os preconceitos raciais e os estereótipos comuns em seu tempo. Além disso, ela denuncia o cerceamento e as agressões de que a mulher brasileira era vítima; e no século XX, mais precisamente na década de 60, Carolina Maria de Jesus, com o sucesso internacional de Quarto de despejo, no qual relata em forma de diário a própria história – de uma mulher pobre, negra, favelada, com pouco estudo, mas que consegue em uma semana vender dez mil exemplares do seu livro.
Já na Contemporaneidade destaca-se Conceição Evaristo, que em sua infância foi da favela, e na juventude trabalhava para poder estudar e realizar o sonho do magistério. Devido à paixão pela literatura, alimentada na infância pelas histórias que a mãe contava, fez o curso de Letras. Em 1980 ela conhece o Grupo Quilombhoje e a série Cadernos Negros, nos quais passa a publicar poesias e contos. Sua escrita poética fala do cotidiano dos excluídos, misturando violência e sentimento, realismo cru e ternura, revelando assim, o compromisso e a identificação da intelectual afro-descendente com os irmãos colocados à margem do desenvolvimento (DUARTE, 2006). No que se refere, a narrativas longas, lança Ponciá Vicêncio, e nos fará junto à personagem que dá nome ao romance, percorre através da memória, a luta de uma mulher pela liberdade bem como todo o processo diaspórico pelo qual o negro trilhou desde a escravidão. É interessante observar que a literatura negra brasileira contemporânea, de acordo com Luiza Lobo (1993, p. 193), tem como marca construir o passado através da memória, mas para isso faz uma separação entre o plano real e o ficcional. O primeiro se divide entre o imaginário e o simbólico, ao passo que no plano ficcional há uma tendência para o biografismo mimético. Sem contar a existência de obras, que se colocam no plano real histórico, seria este o caso de “Ponciá Vicêncio”, que através de um narrador onisciente, traz uma narrativa em 3ª pessoa, com um enredo não-linear, trabalhando um contexto histórico-social onde realidade e ficção se misturam apresentando uma mulher corajosa, mas que padece os infortúnios da escravidão, os quais recebe em herança da cor que possui.
A partir da década de 80, no século passado, se dá o “boom da memória”, a humanidade começa a valorizar seu passado, seus heróis, suas construções arquitetônicas. Livros e filmes foram lançados, no entanto, os africanos e afro-descendentes, especialmente, as mulheres negras ficam mais uma vez à margem, não se lançam filmes apresentando o heroísmo dos negros. Mas ao partilhar as lembranças individuais da sua personagem, a autora exibe a memória coletiva de um povo. Usando uma linguagem simples, personagens envolventes vão aos poucos habitando o leitor, deixando marcas, fazendo-o reconhecer lugares, situações e momentos da vida, como memórias necessárias para construir segundo Huyssem (2000), futuros locais diferenciadas num mundo global.
Nesse sentido observe:
“Bom que ela se fizesse reveladora, se fizesse herdeira de uma história tão sofrida, porque enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem que fosse pela força do desejo, a criação de um outro destino (...) A vida era um tempo misturado do antes-agora-depoise-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.” (EVARISTO, 2003, p. 130-131)
Ponciá morava em uma localidade junto com ex-escravos e seus descendentes, que foram contemplados pela lei do Sexagenário, Lei do Ventre livre e por fim pela Lei Áurea, mas que continuavam “escravos”, “efeitos de uma liberdade assinada por uma princesa, fada-madrinha, que do antigo chicote fez uma varinha de condão. Todos, ainda, sob o jugo de um poder que, como Deus, se fazia eterno”(p. 48). O pai e o irmão trabalhavam para o exdono de seu avô, e ela junto com a mãe fabricavam objetos de barro, que eram vendidos a preços irrisórios. Era uma vida simples, sem grandes perspectivas, fato que causava inquietação em Ponciá. E é por isso, que ela se opondo ao destino que lhe era imposto, após a morte do pai, larga a família e vai para a cidade grande tentar uma vida “melhor”, e contrariando as expectativas não se torna prostituta. Na cidade trabalha como doméstica, compra a sonhada casa com o objetivo de trazer a mãe e o irmão para ficarem a seu lado. Mas ao voltar a seu povoado não os encontra mais, isto porque seu irmão também foi para a cidade na tentativa de encontrá-la. Sem saber do paradeiro da irmã, Luandi Vicêncio, um rapaz analfabeto, negro, se torna soldado. Já a mãe de Ponciá, passa a perambular pelos arredores das comunidades circunvizinhas buscando encontrar os filhos. E por conta de uma inquietação interior, a personagem principal – Ponciá -, não consegue se sentir feliz nem livre. Dessa forma, Conceição Evaristo apresenta
A autora traz para o leitor uma mulher negra, que até a adolescência tem sonhos e desejos. Mas, também, apresenta as mazelas de um país escravocrata, que após dar a “liberdade” ao povo negro, o torna cativo:
“Há tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presente de libertação. E, como tal, podiam ficar por ali, levantar moradia e plantar seus sustentos. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas terras do Coronel Vicêncio (...)”. (EVARISTO, 2003, p. 48)
O trecho acima é constatado por Hebe M. Mattos (1998, p. 284-287), em seus estudos sobre a visão de liberdade no sudeste do Brasil do século XIX, onde o desejo de ex-senhores era que o liberto ficasse sobre a tutela do Estado e esse os forçasse a trabalhar de acordo as exigências dos antigos donos. Ela ainda acrescenta:
“Nos últimos meses da monarquia e ainda na primeira década republicana, os
ex-senhores continuavam a tentar acionar sua ascendência sobre os homens nascidos livres, seus dependentes, bem como sua influência sobre as autoridades locais, para forçar os libertos a tomar contrato de trabalho” (MATTOS, 1998, p. 284)
E é justamente essa liberdade prometida que a personagem central não sentia. É possível destacar na narrativa seu inconformismo num espaço rural, marcado pela subserviência e despersonalização, e as suas frustrações num espaço urbano, lugar de sonhos e aspirações. Por isso, experimentava um sentimento indizível, silêncios, emoções que deveriam ser ditos, mas que ela prefere não dizer, já que seus vazios não podem ser preenchidos com qualquer substância, o que ela precisava era sair do cárcere social, se sentir sujeito, já que até então vivia asujeitada pela condição em que nasceu. “(...) ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra nova vida.” (EVARISTO, 2003, p.82).
Levando em conta o conceito de culturas nacionais de que fala Stuart Hall (2000, p. 47-65), é possível entender porque “Ponciá” não consegue sentir-se em si mesma. As culturas nacionais ao serem construídas devem causar na “nação” um sentimento de pertencimento, levando o sujeito a identificar-se com os mitos de origem, cenários, rituais nacionais, perdas, triunfos, etc. A personagem central não consegue identificar-se nem com o próprio nome, - Vicêncio – que indica seu pertencimento ao Coronel Vicêncio. Muito menos sente “(...) a posse em comum de um rico legado de memórias..., o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva a herança que recebeu”(RENAN, 1990, p. 19 apud Hall, 2000, P. 58). O legado memorialístico dessa personagem vem da África, já que o do Brasil é tortuoso, o que a leva, a não se sentir parte da cultura nacional, além disso, a herança que recebeu de seus pais é deveras dolorosa para querer perpetuar.
Assim, no decorrer da narrativa o leitor vai conhecendo através da memória dessa mulher - a voz menina que cantava suas lembranças - o processo de diáspora que conduz o da senzala à favela: o período da escravidão: “Era pajem de Sinhô moço(...)Era o cavalo onde o mocinho galopava(...)o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu.”(p. 14); o não cumprimento das leis e a alforria encenada “Se eram livres, por que continuavam ali?” (p.14); o desejo de liberdade ”não queria ficar ali repetindo a história dos seus”(p. 38); o encarceramento da pobreza; ao passo que apresenta também a cultura, com suas lendas “menina que passasse por baixo do arco-íris virava menino”(p. 9); a valorização dos mais velhos como fonte de saberes; as experiências, vivencias...
Neste texto, os leitores são levados a reencontrarem o fio condutor de sua própria história, das raízes tão almejadas desde o Romantismo:
(...) descobrirmos quem realmente somos, a verdade de nossa experiência. Ela é uma arena profundamente mítica. É um teatro de desejos populares (...) de fantasias populares. É onde descobrimos e brincamos com as identificações de nós mesmos, onde somos imaginados e representados (...) para nós mesmos pela primeira vez. (HALL, 2003, p. 348)
Assim sendo, de acordo segue a narrativa, o leitor vai percebendo que carrega dentro de si essa negritude, ou essa africanidade, sentimento que é experimentado graças ao descortinar da memória da personagem principal, aonde a autora vai apresentando ao leitor seus/nossos ancestrais, demonstrando sua humanidade, personalidades, desejos, ímpetos, valores, suas contradições interiores e seu olhar sobre si e sobre o outro, possibilidades estas, de que muitos foram privados de experimentar devido o processo de coisificação a que o negro foi submetido, pois como salienta Ianni (1988, p. 209), a cultura e a ideologia dominante escondem muito, esconde as histórias desumanas, açucara a escravidão, prega a democracia racial, etc.
Na cidade, a personagem em destaque se depara com muitas dificuldades, casou-se com um homem sem sonhos, com o qual passa a dividir a pobreza. Morava na favela, perdeu os filhos que teve, mal tinha o que comer, algumas vezes chegara a apanhar do marido, aumentando assim, seu vazio existencial. Aos poucos, essa mulher foi silenciando seus sonhos e alegrias. Com isso, a autora descreve de forma não linear muitas das dificuldades que a mulher negra passou na pós-abolição, bem como a busca incessante pela identidade. Identidade esta, que a literatura e a expressão afro-descendente muito tem ajudado a ser encontrada. Visto que a reconstrução dessa memória ancestral ajuda o leitor, a alimentar o orgulho étnico e a própria identidade (DUARTE, 2002, p. 52).
Conceição Evaristo traz uma narrativa bem feminina, onde segundo ela,
“(...)o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para além de um sentido estético, busca semantizar outro movimento, ou melhor, se inscreve no movimento a que abriga todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida.”(EVARISTO, 2005, p. 54)
em seu texto a mulher tem o papel de força motriz, é ela quem toma as decisões “Era tão bom ser mulher! Um dia também ela teria um homem que mesmo brigando haveria de fazer tudo que ela quisesse”(p. 24), é quem tem iniciativa, e, em quem todos os sonhos são depositados “a menina um dia sairia da roça e iria para a cidade. Então carecia de aprender a ler”(p.25). Como bem enfatiza Duarte:
“(...)o texto de Ponciá Vicêncio destaca-se (...) pelo território feminino de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado, sim, pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção.” (DUARTE, 2006)
Através da memória do narrador, é possível conhecer muito mais que uma simples narrativa ficcional, é possível perceber o caminhar de um povo em busca de uma identidade usurpada, povo que como no exemplo bíblico, foi retirado da antiga terra para ser escravo e agora busca um lugar seu. Lugar difícil de ser encontrado neste país que prega a democracia racial, e que, ao mesmo tempo, relega a inferioridade os afro-descendentes. Diante da fragmentação a que foram expostos, esses homens e mulheres vão buscando nas histórias que ouvem dos mais velhos o elo perdido com a mãe África, ao poucos retiram da oralidade sua cultura, religiosidade, seu passado real, não este de ex-escravos. Esta costura de retalhos feita por Conceição Evaristo, gerou “Ponciá Vicêncio”, uma história “despojada de liberdade, mas não de consciência”(DUARTE, 2006), que nos leva a salvar do esquecimento e/ou cárcere provocado por este mundo imediatista, a essência de que somos feitos.
Posteriormente á data de publicação foram feitas mudanças, e cada vez que leio sempre encontro algo novo para ser retirado ou acrescentado. Ao utilizar os textos do blog favor citar fonte.